Texto
postado na internet em 27 de fevereiro de 2011, com a seguinte nota
do autor: “Dostoiévski
e a Bahia,
esse deveria ser o título correto desse artigo, segundo alguns
amigos que leram o texto em janeiro de 2007, quando foi apresentado
em um curso da Escola
de Magistrados da Bahia.
Nesse trabalho trato do estudante Rodion
Románovitch Raskólnikov, protagonista
do célebre romance russo Crime
e Castigo,
mas também escrevo sobre as cabeças cortadas que, na Bahia, eram
examinadas pelo médico legista Estácio de Lima, conforme seu
sinistro estudo intitulado O
mundo estranho dos cangaceiros.
Como se sabe, Cabezas
cortadas é
o título de um dos filmes do nosso conterrâneo Glauber Rocha,
cineasta que não é mencionado no texto, mas que estava em minha
mente durante toda a redação desse ensaio, escrito em 2006, quando
eu atuava como juiz de direito na Vara Criminal de Itapetinga –
Bahia”.
1.
Introdução
Até
poucos anos atrás, quase todos os estudantes brasileiros de direito
penal conheciam o difundido manual escrito por Edgard Magalhães
Noronha. Nesse livro, ao tratar da evolução histórica das ideias
penais, o ilustre jurista utilizava uma metáfora
inesquecível,
dizendo que o crime era uma sombra
sinistra que
desde sempre acompanhava o ser humano.
“A
história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge
com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime,
qual sombra sinistra, nunca dele se afastou”. (NORONHA, 1987, p.
20).(1)
Comparando
o crime
a
uma sombra
sinistra,
o então famoso criminalista fazia uso de um recurso literário.
Assim, em seu texto, além de explicitar um conteúdo
verdadeiro
da matéria penal, servia-se da forma
verbal
para transmitir beleza
estética
a quem lia. São poucas as ideias de Noronha que resistiram ao passar
do tempo, pois cada dia que passa seu antigo manual fica mais
defasado. A imagem
literária
que empregou, entretanto, é inesquecível e será sempre lembrada.
O
presente estudo, partindo desse exemplo de fusão dos “saberes”,
pretende ousar adentrar simultaneamente nesses dois universos
misteriosos – o crime
e
a literatura.
Trata-se aqui de uma pesquisa de natureza bibliográfica, de caráter
interdisciplinar, vinculada a esses temas. Na verdade, busca-se
tentar sistematizar leituras pessoais procedidas há vários anos,
colocando-se as próprias ideias em ordem. Pretende-se assim fundir
em um único texto estudos criminológicos e estudos literários.
Desta
forma, este trabalho terá como objetivo demonstrar que é instrutiva
e culturalmente enriquecedora a experiência de ler uma obra
literária à luz dos ensinamentos das ciências criminais. Nesse
sentido, optou-se aqui por estudar o romance Crime
e castigo,
de Fiódor Dostoiévski, buscando extrair dessa experiência
reflexões de natureza diversa daquelas normalmente consideradas como
estritamente reservadas à literatura.
Assim,
pretendemos nesta pesquisa desenvolver dois enfoques principais.
Inicialmente, tentar esboçar uma breve análise literária do
romance de Fiódor Dostoiévski. Depois, extrapolando
intencionalmente os limites tradicionais dos estudos literários,
buscar proceder a uma análise dos aspectos criminológicos
levantados pelo tema, em especial quanto às relações entre crime,
personalidade individual e sociedade.
Do
ponto de vista metodológico, a pesquisa pressupõe uma adesão
radical a uma concepção interdisciplinar da compreensão da
realidade, fugindo da tradicional divisão estanque entre os diversos
“saberes”.
Pretende-se,
portanto, reunir em um todo orgânico concepções advindas da teoria
jurídica, da criminologia, das ciências sociais e dos estudos
literários.
Quanto
ao enfoque jurídico, busca-se um rompimento com o pensamento
normativista até ontem absoluto, adotando-se uma visão crítica do
fenômeno do direito. Na perspectiva da criminologia e das ciências
sociais, busca-se explicitar a experiência de aprendizagem relatada
pelo psicanalista Rollo May, que dizia ter aprendido mais sobre o ser
humano nos cursos de literatura do que naqueles da sua especialidade
científica.
“[...]
muitos fizemos a estranha descoberta, quando estudantes
universitários, de que aprendíamos muito mais psicologia, isto é,
aprendíamos muito mais a respeito do homem e de sua experiência,
nos cursos de literatura do que nos de psicologia. (MAY apud LEITE,
2002, p. 16)”.(2)
Quanto
aos estudos literários, busca-se aplicar aqui a lição do crítico
Alfredo Bosi: “A dignidade das Letras não está nelas mesmas, mas
no contínuo ir e vir do que está escrito para o que não está
escrito” (BOSI, 2003, p. 282). (3) Enfim, busca-se o texto
palpitante e a vida que palpita fora dele. O que está escrito e o
que não
está
escrito.
Este,
portanto, é o esforço que pretendemos empreender nos tópicos
apresentados a seguir.
2.
Dignidade da literatura
A
literatura é um produto cultural milenar. Essa afirmação constitui
um dos poucos pontos em que concordam entre si as muitas teorias que
tentaram apresentar um conceito satisfatório desse fenômeno. Há
milhares de anos que o ser humano busca se utilizar da linguagem para
expressar sua visão das questões que surgem em sua existência,
buscando equacionar os problemas apresentados pela vida e refletir
sobre a maneira como as pessoas reagem ante os enigmas que a todo o
momento lhe são propostos. É muito antiga a tradição literária
da humanidade.
Na
civilização ocidental, em particular, assistiu-se ao longo dos
séculos à formação de um “cânone literário”. Através de
critérios os mais diversos, os estudiosos foram selecionando as
obras e os escritores que eram considerados os mais importantes de
uma época ou de uma nação específica. Os critérios utilizados
para se avaliar uma obra literária foram muitos. Seus fundamentos
variavam de acordo com as diversas matrizes ideológicas que lhe
serviam de inspiração.
Na
verdade, ao que parece, desde sempre a produção de obras literárias
esteve associada a uma determinada teoria literária. Cada escritor
ou cada corrente de escritores sempre teve a lhe guiar um padrão
doutrinário que lhe apresentava uma definição sobre o que
significava o seu ofício e qual a sua função no ambiente social.
Alguns escritores possuíam clara consciência desses padrões,
enquanto outros autores eram mais intuitivos. As obras produzidas,
entretanto, traziam sempre subjacentes as matrizes teóricas que lhes
inspiraram.
Portanto,
foram muitas e ainda são muitas as “teorias literárias”. Todas
elas tentaram e ainda tentam apresentar um conceito satisfatório
para o fenômeno da literatura. No entanto, a tarefa é muito
complexa. Para cada argumento apresentado é possível aduzir outros
tantos em sentido contrário. O que é a literatura? Essa é uma
pergunta que possui muitas respostas. Por isso mesmo, talvez seja um
problema para o qual não exista solução plenamente aceitável.
O
filósofo e ficcionista francês Jean-Paul Sartre escreveu um célebre
ensaio dedicado ao tema. O título da obra era explícito: Qu’est-ce
que la littérature? Em
português, Que
é a literatura? Ele,
portanto, procurou de maneira explícita tentar responder a essa
pergunta desafiadora. Na verdade, porém, o famoso pensador reconhece
a impossibilidade de fornecer uma resposta concludente e
satisfatória, deslocando então o foco da questão para outra
perspectiva. Segundo Sartre, o importante é saber o que pode ser
feito com a literatura, pois para ele “o fazer
é
revelador do ser”,
vez que cada novo gesto desenharia novas figuras sobre a terra. A
arte de escrever, portanto, seria aquilo que os homens escolheriam
fazer dela. Nesse sentido, para Sartre a literatura deveria ocupar-se
da vida das pessoas, procurando refletir sobre o ambiente social,
visando transformá-lo: “é pelo livro que os membros dessa
sociedade poderiam, a cada momento, situar-se, enxergar-se e enxergar
a sua situação”. (SARTRE, 1993, p. 119, 175 e 218).(4)
Adotando
esse ponto de vista, o presente trabalho parte do pressuposto de que,
ante a impossibilidade teórica de se formular um conceito
satisfatório de literatura, a melhor atitude é examinar o que pode
ser feito dela. Nesse sentido, busca-se aqui, através da literatura,
proceder-se a uma reflexão sobre um dos mais dramáticos aspectos da
vida social, que é aquele alusivo ao crime e às suas
circunstâncias.
3.
Fiódor Dostoiévski
Discorrendo
sobre o cânone literário da civilização ocidental, o crítico
austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux sustentava que “a
literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens
típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Ele mesmo,
então, passa a relacionar: Dom
Juan,
Fausto,
Hamlet,
Dom
Quixote,
Édipo,
Till
Eulenspiegel,
Sir John
Falstaff,
o marujo Robinson
Crusoé,
o farmacêutico M.
Homais,
o estudante Raskólnikov
(CARPEAUX,
1999, p. 116).(5)
No
presente trabalho, o que se pretende é discorrer sobre os valores e
conteúdos permanentes associados a um dos personagens da literatura
ocidental acima relacionados – o estudante Raskólnikov.
Sobre a conduta fictícia dele é que versa este estudo. Rodion
Románovitch Raskólnikov é
o personagem principal do célebre romance Crime
e castigo,
publicado na Rússia do século XIX pelo escritor Fiódor
Dostoiévski.
Unanimemente
considerado como um dos principais ficcionistas de toda a história
da literatura universal, Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski nasceu
em Moscou, na Rússia, em 1821. Cursou engenharia militar e, em 1846,
publicou seu primeiro romance. Envolvido com um círculo
revolucionário de socialistas utópicos, em 1849 é preso e
condenado à morte. Já se encontrava no patíbulo quando soube que
sua pena havia sido comutada. Foi então deportado para a Sibéria,
onde por cerca de cinco anos esteve submetido ao regime de trabalhos
forçados. Segundo Otto Maria Carpeaux, “um crítico daquela época
chegou a dizer que Dostoiévski foi doutrinado na sua filosofia
político-religiosa pelo chicote” (CARPEAUX, 1959-1966, p. 2533).
(6) Epilético, o escritor russo passaria grande parte da sua vida
oprimido por dívidas, agravadas pelo vício do jogo. Ele morreria em
São Petersburgo, na Rússia, em 1881, deixando uma influência
avassaladora sobre toda a literatura mundial.
Dono
de vasta obra ficcional, os títulos quase proverbiais dos romances
de Dostoiévski incorporaram-se à tradição da cultura
internacional. Em 1846 ele lançou Gente
pobre;
em 1861, Humilhados
e ofendidos;
em 1862 foi publicado Recordações
da casa dos mortos.
Após Crime
e castigo (1866),
ele ainda escreveria outras elogiadas obras: O
idiota (1868),
Os
demônios (1871),
O
adolescente (1875)
etc. O romance Os
irmãos Karamázov,
de 1880, é por muitos considerada sua obra-prima. Durante vários
anos Dostoiévski ocupou-se da obra Diário
de um escritor,
em que expôs sua crença no cristianismo oriental ortodoxo e na qual
manifestou sua adesão a um pan-eslavismo radical e
surpreendentemente xenófobo.
Apesar
do dramatismo emocional e das tendências místicas, a crítica
literária considera a obra dostoievskiana como sendo “pós-romântica”
e próxima dos padrões da escola realista-naturalista. Em sua
extensa História
da literatura ocidental,
cujos oito volumes foram publicados entre 1959-1966, Otto Maria
Carpeaux trata da obra do escritor russo em um capítulo
sugestivamente intitulado “A conversão do naturalismo”. Os
estudiosos, entretanto, sustentam a existência de condições
históricas específicas na Rússia, país que não conheceu a
Antiguidade clássica e que não participou do chamado Renascimento,
períodos culturais que são referências fundamentais para o
realismo e o naturalismo. Naquele país, então, a escola realista
teria apresentado características que destoavam dos traços
predominantes nos demais países da Europa. Assim, somente
adotando-se uma concepção mais ampla é possível caracterizar como
realistas as obras de Dostoiévski e também dos seus compatriotas
Lev Tolstói (1828-1910), Anton Tchekhov (1860-1904) e Maksim Górki
(1868-1936).
Sobre
a obra do escritor russo, leciona Otto Maria Carpeaux:
“Pela
análise psicológica, os conflitos ideológicos em Dostoiévski
viram conflitos dramáticos. É o único escritor da literatura
universal, depois de Dante, cuja arte gira apaixonadamente, dir-se-ia
freneticamente, em torno de ideias. A base da arte dramática de
Dostoiévski é uma antropologia, uma teoria filosófica da natureza
humana”. (CARPEAUX, 1959-1966, p. 2538).
Segundo
o crítico Mikhail Bakhtin, um dos seus mais respeitados intérpretes,
Dostoiévski teria criado o “romance polifônico”, no qual as
ideias do escritor são mostradas em confronto com outras, existindo
múltiplos ângulos de abordagem do tema, espalhando-se o entrechoque
ideológico por todos os planos da obra. Estaria presentes no texto
uma multiplicidade de vozes, como se dentro dele existissem outros
textos. No “romance polifônico”, cada personagem seria
independente
e autônomo em relação aos demais, cada um com seu mundo próprio,
porém todas as vozes possuindo a mesma situação de igualdade, ante
a grande liberdade que o autor conferiria à sua criação, tendo em
vista a diversidade social, psicológica e mesmo espiritual a ser
apresentada. Segundo Bakhtin, na obra existiriam vários “discursos
dialógicos”, continuamente inacabados, vez que sempre alusivos a
problemas insolúveis. (BAKHTIN, 2005, p. 11).(7)
Os
romances de Dostoiévski são marcados pela profunda análise
psicológica, pela busca dos aspectos incomuns da realidade e pela
capacidade de fazer com que as ideias ganhem vida através dos seus
personagens, estes sempre apresentados em situações extremas.
4.
Crime e castigo (o que está escrito)
O
romance Crime
e castigo (no
original, Prestuplenie
i nakazanie,
ou mais exatamente, no alfabeto cirílico, Престъпление
и наказание)
foi publicado na Rússia, em 1866. Logo foi traduzido para línguas
diversas. Para a língua portuguesa, por exemplo, existem várias
traduções da obra. No nosso idioma, entretanto, praticamente todas
as traduções são indiretas, ou seja, são traduções de uma outra
tradução.
No
presente estudo optou-se por trabalhar com uma preciosa tradução
feita por Paulo Bezerra, que traduziu o romance direto do original em
língua russa. Esta tradução foi publicada pela Editora 34, em São
Paulo, no ano de 2001. O texto aqui utilizado é a 4ª edição, em
5ª reimpressão, lançada pela mesma Editora 34, porém no ano de
2005. O tradutor, por sua vez, informa ter trabalhado a partir do
texto em russo publicado em 1978 pela Editora Naúka, em Moscou –
Leningrado, como tomo VI dos trinta tomos das obras completas de
Dostoiévski.
Quando
foi publicada a primeira edição do romance, o autor já era um
escritor experiente e dominava amplamente os recursos expressivos do
seu idioma. Infelizmente, vários aspectos da linguagem ficam
prejudicados quando o texto é vertido para outras línguas. Assim,
por exemplo, os nomes dos personagens da obra ora tratada apresentam
em russo um duplo significado, aspecto que não resiste às
traduções.
O
romance Crime
e castigo é
escrito em terceira pessoa, sendo a sua história contada por um
narrador onisciente.(8) Esse narrador conhece todos os fatos e
situações em que se envolvem os personagens e tem acesso a todas os
lugares, até mesmo aos pensamentos. O narrador conta a história
pelo ponto de vista do protagonista Raskólnikov,
inclusive
descrevendo seu estado mental. Será assim em praticamente todo o
texto. Em algumas poucas ocasiões, entretanto, adotará o ponto de
vista de um ou outro personagem secundário.
Embora
o texto não explicite com exatidão, os fatos narrados acontecem por
volta de 1860, durante o regime de autocracia czarista. O cenário da
história será a cidade de São Petersburgo (que também já se
chamou Petrogrado e Leningrado), cidade que então era a capital da
Rússia. Utilizada expressivamente como símbolo do estado mental do
protagonista, descrita como suja, repugnante e socialmente decadente,
a cidade de São Petersburgo será quase que uma personagem da trama
criada por Dostoiévski.
A
história contada pelo romance é aparentemente simples. Um estudante
pobre comete dois assassinatos e depois vai para a prisão. Em duas
linhas, esse seria seu enredo. Nos primeiros momentos após ser
traduzido para outras línguas, Crime
e castigo foi
interpretado como sendo um romance policial ambientado em uma terra
exótica. Posteriormente surgiram inúmeras outras tentativas de
interpretação, que realçaram a profunda complexidade da obra.
Rodion
Románovitch Raskólnikov é
o protagonista da trama, o personagem principal do livro. Em
conformidade com a noção de “romance polifônico” sustentada
pelo crítico Mikhail Bakhtin (2005), a obra traz ainda diversas
histórias secundárias, construídas em paralelo ao seu tema
central. Tendo em vista os objetivos visados no presente trabalho,
vamos concentrar nossa análise na história central. Assim, o
protagonista Raskólnikov
é
apresentado como sendo um estudante que vive em extrema pobreza na
cidade russa de São Petersburgo. O escritor Dostoiévski
praticamente não descreveu a aparência exterior do personagem,
embora ao longo do texto mostre com perfeição os mais profundos
movimentos da sua mente. Raskólnikov
é
inteligente e ele próprio, em alguns momentos, considera-se um
gênio, apresentando certos sintomas de megalomania. Seu
comportamento revela aspectos neuróticos, sendo que em alguns
momentos age de maneira altruísta, apresentando-se outras vezes
extremamente apático.
Sabe-se
que, tradicionalmente, um drama constrói-se pelo enfrentamento entre
o protagonista (personagem principal) e o seu antagonista (o “vilão”,
digamos assim). Desta forma, o personagem antagonista contesta ou
desafia o personagem principal, opondo-se aos seus desejos ou ao seu
destino. No romance Crime
e castigo,
o antagonista é a própria consciência do estudante Raskólnikov.
Ele planeja assassinar Aliena
Ivánovna,
viúva que explora outras pessoas através da prática da agiotagem,
emprestando dinheiro a juros. Conquanto desprezível, essa personagem
pouco aparece na trama, vez que seu assassinato é descrito ainda na
parte inicial da obra. Também é vítima de assassinato Lisavieta
Ivánovna, irmã
da agiota, porém a mesma é morta apenas porque chega acidentalmente
ao local em que ocorria o primeiro crime. Por outro lado, são também
secundários os personagens Lújin
e
Svidrigáilov,
figuras
burguesas desprezadas pelo estudante Raskólnikov.
Embora sagaz e astuto, é também personagem secundário na trama o
juiz de instrução Porfiri
Pietróvitch, espécie
de detetive que investiga os assassinatos. Assim, o papel do
antagonista é desempenhado pela própria consciência do personagem
principal.
Apesar
do título do romance, apenas no epílogo da obra é rapidamente
mencionado o castigo formal a que Raskólnikov
teria
que se submeter. Dostoiévski, porém, escreveu centenas de páginas
descrevendo o drama psicológico que se passa na mente do autor dos
delitos. Nesse contexto de sofrimento psíquico é que serão
narradas as relações entre Raskólnikov
e
sua mãe Pulkhéria,
sua irmã Dúnietchka
e
seu melhor amigo Razumíkhin.
Em
razão das idéias trabalhadas por Dostoiévski, personagem de
importância fundamental será Sófia
Semeónovna Marmieládova,
também chamada no texto simplesmente de Sônia.
Filha
de um bêbado contumaz, ela passa a exercer a prostituição para
poder garantir o sustento dos seus familiares, mantendo-se porém
fortemente religiosa. Ela será a primeira pessoa a quem Raskólnikov
confessará
a autoria dos delitos. Sônia
incentivará
o estudante a se entregar às autoridades policiais e o acompanhará
até a Sibéria, onde ele cumprirá pena de oito anos de trabalhos
forçados (“galés”). Vale ressaltar que a pena aplicada no caso
foi relativamente pequena, vez que o autor dos delitos foi
beneficiado pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes
alusivas ao modo como foram praticados os crimes e também alusivas à
“personalidade patológica” do agente.
Através
da conduta de Sônia,
o escritor Dostoiévski vai apresentar suas ideias sobre a mística
cristã e sobre a redenção pelo sofrimento, considerando que o ato
de sofrer teria o efeito de purificar o espírito humano. A
personagem levará Raskólnikov
a
se arrepender sinceramente dos crimes que cometera e, mais do que
isto, ela levará o estudante a abandonar as ideias em razão das
quais praticou os delitos.
Desta
forma, o clímax da narrativa ocorre no momento em que Raskólnikov
confessa
perante as autoridades a autoria dos delitos, após páginas e mais
páginas de descrição do seu drama psicológico íntimo.
Paulo
Bezerra, tradutor e professor de literatura russa, aponta que
Dostoiévski buscava sempre apresentar seus personagens em situações
extremas:
“Um
dos componentes centrais da composição em Dostoiévski é o limite:
alguém impôs um limite ao homem, cabe-lhe parar diante dele e
igualar-se ao resto da manada ou ultrapassá-lo, ainda que à custa
de terríveis sacrifícios [...] Dostoiévski representa a personagem
central às vésperas de uma mudança radical em sua vida, capaz de
mudar seu caráter ou destruí-lo. Daí o limite. Mas o homem
desconsidera quem lhe impôs esse limite e o ultrapassa”. (BEZERRA,
2006, p. 08).(9)
O
tema principal do romance ora analisado, obviamente, é o crime. Essa
temática, entretanto, será mostrada de forma extremamente complexa,
envolvendo noções alusivas aos limites impostos pelos princípios
morais e religiosos. O “castigo” mencionado no título da obra
não parece se referir à “pena” formal imposta pelas
instituições de controle social. A maneira como o texto é
construído faz com que esse conceito se aproxime mais da ideia de
“culpa”, conforme sentido religioso cultivado pela tradição
judaico-cristã. Assim, o verdadeiro tema abordado por Dostoiévski
parece se situar em um patamar mais alto, próximo às noções
filosóficas alusivas ao “bem” e o “mal”, e à liberdade do
ser humano para fazer as suas escolhas respectivas.
5.
Ordinários e extraordinários
Segundo
a narrativa do romance Crime
e castigo,
o personagem Raskólnikov
era
estudante de direito. Antes de cometer os dois assassinatos, ele
elabora uma surpreendente teoria sobre o crime, que chega a expor em
um artigo publicado em ocasião anterior aos fatos narrados.
Aproximadamente
no ponto médio da narrativa, o romance traz uma cena em que o
estudante Raskólnikov
tenta
explicar ao juiz de instrução Porfiri
Pietróvitch sua
“teoria do crime permitido”. Diz o texto, conforme a tradução
de Paulo Bezerra:
“-
E como foi que o senhor soube que o artigo era meu? Foi assinado com
iniciais [...] Pelo que me lembro, tratei do estado psicológico do
criminoso durante todo o ato do crime.
-
Sim, e o senhor insiste em que o ato de execução de um crime sempre
é acompanhado de uma doença. Muito, muito original, no entanto... a
mim propriamente não foi essa parte do seu artigo que me interessou
e sim um certo pensamento emitido no final do artigo [...]”
(DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 267).(10)
Um
pouco adiante, o juiz de instrução Porfiri
Pietróvitch fala
aos demais personagens que participam da cena sobre a teoria de
Raskólnikov
a
respeito da existência de pessoas “ordinárias” e
“extraordinárias”:
“-
Toda a questão consiste em que, no artigo dele, todas os indivíduos
se dividiriam em ordinários
e
extraordinários.
Os ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de
infringir a lei porque eles, vejam só, são ordinários. Já os
extraordinários têm o direito de cometer toda sorte de crimes e
infringir a lei de todas as maneiras precisamente porque são
extraordinários”. (DOSTOIÉVSKI,
2005, p. 268).
O
estudante Raskólnikov
passa
então a explicar suas ideias:
“-
[...] Eu insinuei pura e simplesmente que o homem extraordinário tem
o direito... ou seja, não o direito oficial, mas ele mesmo tem o
direito de permitir à sua consciência passar... por cima de
diferentes obstáculos, e unicamente no caso em que a execução da
sua ideia (às vezes salvadora, talvez, para toda a humanidade) o
exija [...] Acho que se as descobertas que Kepler e Newton fizeram,
como resultado de certas combinações, não pudessem chegar de
maneira nenhuma ao conhecimento dos homens senão com o sacrifício
da vida de um, dez, cem e mais homens, que impediriam tais
descobertas ou lhes seriam um obstáculo, Newton teria o direito, e
estaria inclusive obrigado, a... eliminar esses dez ou cem homens
para levar suas descobertas ao conhecimento de toda a humanidade”.
(DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 268-269).
Em
um longo discurso, o estudante Raskólnikov
prossegue
explicando seu pensamento:
“-
[...] os indivíduos, por lei da natureza, dividem-se geralmente em
duas categorias: uma inferior (a dos ordinários), isto é, por assim
dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes; e
propriamente os indivíduos, ou seja, os dotados de dom ou talento
para dizer em seu meio a palavra nova [...] Mas se um deles, para
realizar sua ideia, precisar passar por cima ainda que seja de um
cadáver, de sangue, a meu ver ele pode se permitir, no seu interior,
na sua consciência passar por cima do sangue [...]” (DOSTOIÉVSKI,
2005, p. 269-270).
Em
sua “teoria do crime permitido”, portanto, Raskólnikov
sustenta
a existência de crimes cometidos por questão de “consciência”
e “necessidade histórica”, considerando que os indivíduos
socialmente nocivos deveriam ser exterminados. Assim, a classe dos
“extraordinários” seria constituída por verdadeiros
“super-homens”, raça superior à massa dos simples mortais
comuns.
Essas
considerações, bem como as transcrições acima do texto do romance
Crime
e castigo, serão
relevantes para o objetivo central do presente trabalho, conforme
será evidenciado nos tópicos seguintes deste estudo.
6.
Leitura e reflexões (o que não
está
escrito)
Sustentou-se
neste trabalho, desde o inicio, ser possível um estudo
interdisciplinar que, rompendo os limites tradicionais das diversas
áreas de conhecimento, buscasse nos estudos literários subsídios
para uma reflexão aprofundada sobre aspectos da realidade social.
Nesse
sentido, a narrativa do escritor Dostoiévski oferece várias
possibilidades de leitura. Por exemplo, ante a longa descrição do
estado psicológico do protagonista, um dos questionamentos possíveis
seria sobre a possibilidade de que os crimes tratados tivessem
resultado de uma personalidade
doentia.
Mas, indaga-se, até que ponto patologias
da personalidade podem
ser entendidas como causadoras de crimes?
Por
outro lado, o texto de Crime
e castigo menciona
que, após cometer os assassinatos, o estudante Raskólnikov
subtrai
alguns objetos de valor da vítima Aliena
Ivánovna.
Por sua vez, essa vítima é descrita como pessoa que explorava
outros financeiramente. Desta maneira, outro questionamento
pertinente seria indagar sobre a influência da pobreza e das
dificuldades econômicas como causas do comportamento criminoso.
Um
dos eixos dramáticos fundamentais do romance ora estudado é o
difícil reconhecimento pelo protagonista da trama ficcional de que
teria efetivamente cometido crimes. Durante quase toda narração ele
não admitirá isso, considerando sua conduta como justificada, vez
que a velha usurária não seria um ser humano que merecesse viver.
Ele, na verdade, teria fracassado porque era fraco e medíocre – um
ordinário,
segundo sua própria teoria. Ora, admitamos que a velha usurária
fosse uma criatura desprezível e que realmente não merecesse viver.
A reflexão que se impõe é sobre quem
teria o direito de matá-la. O
estudante Raskólnikov,
caso fosse um gênio extraordinário,
um indivíduo supostamente colocado acima das normas morais, estaria
legitimado para tal encargo?
No
texto do romance, Dostoiévski busca um desfecho inspirado na
espiritualidade mística do cristianismo, encaminhando o seu
personagem a uma regeneração dentro da tradição religiosa. Fora
do texto literário – no âmbito do
que não está escrito, segundo
a lição de Alfredo Bosi (2003, pág. 282) – nessa dimensão
restam reflexões cujo equacionamento requer o subsídio de outras
esferas de estudo. Afinal, pergunta-se, o que é o crime? Tentando
buscar uma resposta para essa tormentosa indagação, ou ao menos
tentando se aproximar de um caminho que talvez levasse a uma
resposta, o presente trabalho formula a seguir algumas reflexões
sobre o comportamento delinquente e suas relações com a
personalidade individual e com as desigualdades sociais.
7.
Crime e personalidade
Como
já escrito acima, é possível questionar até que ponto patologias
da personalidade podem
ser entendidas como causadoras de crimes.(11) Estudiosos do passado
afirmavam que o crime seria o resultado da mal sucedida domesticação
desse animal selvagem chamado homem. Um animal de alta
periculosidade, pois, além de violento, possuiria a habilidade de
raciocinar de forma abstrata. Essa afirmação, conquanto
evidentemente exagerada, nos leva a refletir sobre a pessoa do
criminoso, analisando as relações entre o crime e a personalidade
individual.
Na
verdade, a ênfase na busca do conhecimento dos traços definidores
da personalidade do indivíduo criminoso tornou-se, ao longo do
tempo, uma forte corrente dos estudos criminológicos. Poderíamos
até afirmar que esses estudos se desdobraram em duas grandes linhas
de pesquisa. Uma delas seria aquela que busca uma abordagem
sociológica do crime, considerando este como uma manifestação da
vida coletiva em sociedade. A outra grande vertente seria aquela que
se debruça sobre o indivíduo criminoso, tentando através do
conhecimento da sua personalidade descobrir as razões da sua
conduta.
São
historicamente volumosos os estudos daqueles que buscaram conhecer o
indivíduo criminoso.(12) Alguns desses pesquisadores se tornariam
célebres, como é o caso do famoso Cesare Lombroso (1835-1909), que
em busca do perfil do “criminoso nato” praticamente tornou-se
criador da chamada “antropologia criminal”. Mais tarde, despidas
dos preconceitos lombrosianos, mas na mesma perspectiva metodológica
centrada no indivíduo, novas disciplinas surgiriam, como é o caso
da chamada “criminologia clínica”. Herdeiros das pesquisas
lombrosianas, alguns médicos e psiquiatras pretenderam com seus
exames periciais e clínicos monopolizar as tarefas alusivas à
prevenção e repressão criminal.
Sérgio
Salomão Shecaira descreve com exatidão esse ponto de vista:
“O
infrator era um prisioneiro de sua própria patologia (determinismo
biológico), ou de processos causais alheios (determinismo social).
Era ele um escravo de sua carga hereditária: um animal selvagem e
perigoso, que tinha uma regressão atávica e que, em muitas
oportunidades, havia nascido criminoso [...] Muitos se dividiram
entre a pena proporcional ao mal causado (proposta pelos clássicos)
e a medida de segurança com finalidade curativa, por tempo
indeterminado, enquanto persistisse a patologia [...]” (SHECAIRA,
2004, p. 48).(13)
Essa
perspectiva teórica centrada no indivíduo sempre foi muito forte,
sobrevivendo até os dias atuais. Assim, por exemplo, em uma obra
sugestivamente intitulada Crime
and personality, o
psicólogo Hans Jürgen Eysenck expôs a sua teoria do
condicionamento, explicação psicodinâmica do comportamento
delinquente:
“Numa
revisão sumária das teorias e fatos ligados à criminalidade,
podemos dizer que, tal como o melancólico de Galeno, com sua
combinação de introversão e alta versatilidade emocional,
corresponde à maioria dos neuróticos da nossa sociedade, o
colérico, extrovertido e fortemente emotivo corresponde ao moderno
criminoso”. (EYSENCK apud DIAS; ANDRADE, 1997, p. 213).(14)
No
estado da Bahia, terra natal do autor do presente trabalho, as ideias
acima expostas influenciaram intensamente três ilustres médicos
legistas, figuras históricas que depois emprestariam seus nomes a
inúmeros logradouros públicos, instituições psiquiátricas e
institutos de polícia técnica. São eles: Nina Rodrigues, Afrânio
Peixoto e Estácio de Lima.
Raimundo
Nina Rodrigues (1862-1906), conquanto Maranhense, foi professor da
Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1894 publicou o livro As
raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, obra
citada inclusive pelo próprio Cesare Lombroso, que passou a
considerar o estudioso brasileiro como apóstolo da “antropologia
criminal” na América do Sul. Tendo sustentado a necessidade da
perícia psiquiátrica nos tribunais, suas ideias nos dias de hoje
parecem absurdamente racistas: “O negro é rixoso, violento nas
suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez, e esse fundo de
caráter imprime o seu cunho na criminalidade colonial atual”,
escreveu ele (NINA RODRIGUES apud SHECAIRA, 2004, p. 107). Conforme
estranha versão noticiada pelo jurista Roberto Lyra, “a morte de
Nina Rodrigues foi atribuída à vingança de deuses negros pela
profanação de seus segredos” (LYRA, 1992, p. 98).(15)
Nascido
em Lençóis, no interior baiano, Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947)
foi também professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Foi ainda
deputado federal eleito pela Bahia. Em 1903 mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde passou a lecionar na Faculdade de Medicina local. Além
de inúmeros estudos científicos, escreveu várias obras de ficção,
tendo pertencido à Academia Brasileira de Letras, instituição que
chegou a presidir. Segundo Enrico Ferri (1856-1929), sucessor e
continuador do pensamento de Cesare Lombroso, a obra de Afrânio
Peixoto manifestava adesões pelo menos relativas ao pensamento
lombrosiano (SHECAIRA, 2004, p. 108).
Embora
alagoano, Estácio Luiz Valente de Lima (1897-1997) foi também
professor catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia. Admirador e
discípulo de Nina Rodrigues, durante muitos anos foi guardião das
cabeças degoladas de, dentre outros, Virgulino Ferreira da Silva,
Maria Gomes de Oliveira e Cristiano Gomes da Silva Cleto, indivíduos
mais conhecidos por suas alcunhas legendárias - Lampião, Maria
Bonita e Corisco, respectivamente. Essas pessoas, como se sabe,
tornaram-se figuras míticas do chamado “cangaço”, conhecida
luta armada travada no nordeste brasileiro até a primeira metade do
século XX, envolvendo tropas do governo e bandos de camponeses
rebelados. Em 1965, Estácio de Lima publica o livro O
mundo estranho dos cangaceiros. Apesar
de lançada quando as ideias de Cesare Lombroso já eram
violentamente criticadas, essa obra não consegue esconder as
profundas influências da “antropologia criminal”. Bastante
ilustrado com fotografias de cabeças mumificadas e radiografadas, o
livro de Estácio de Lima lamenta a impossibilidade do cotejo das
suas peças com outras cabeças degoladas no passado.
“É
pena que umas tantas documentações de caráter antropológico,
recolhidas pelo Professor Nina Rodrigues, no seu tempo, inclusive a
cabeça de Antônio Conselheiro, o Bom Jesus de Canudos, e o crânio
de Lucas da Feira, o lúgubre e famigerado escravo assassino,
houvessem desaparecido no braseiro e nas chamas que destruíram a
Faculdade de Medicina da Bahia, no começo do século. Agora,
poderíamos tudo confrontar”. (LIMA, 1965, p. 304).(16)
Por
fim, Estácio de Lima faz expressa referência a Cesare Lombroso,
deixando explícita a sua influência.
“De
qualquer sorte, não é lícito falarmos de “estigmas”, no
sentido da antiga doutrina de Lombroso, quando nos defrontamos com um
cangaceiro, vivo ou morto. O mestre italiano, se acaso ainda vivesse,
ficaria decepcionado visitando o nosso Museu, ou convivendo com os
velhos bandoleiros, pois não encontraria os caracteres assinalados
no seu criminoso nato”. (LIMA, 1965, p. 305).
Mas
voltando a tratar da “teoria do condicionamento”, já acima
referida, os professores Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa
Andrade trazem argumento que fere de morte essa corrente e todas as
suas similares, quando dizem que “o problema que se põe a Eysenck
é, pois, o problema típico das teorias psicodinâmicas: saber
porque é que, apesar de tudo, a generalidade das pessoas não comete
crimes” (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 210).
Ora,
todo esse esforço dos pesquisadores acima mencionados sempre foi no
sentido de encontrar quais seriam as “causas” do crime. Os
resultados dessa pesquisa, entretanto, sempre foram insatisfatórios.
Ficou-se longe de se atingir uma explicação que esclarecesse a
dinâmica do fenômeno e estabelecesse quais suas condições gerais
de ocorrência.
De
um modo geral, a abordagem centrada no indivíduo delinquente
considera que o mesmo seja um “anormal”. Evidentemente, existem
criminosos que são portadores de alguma anormalidade. Entretanto,
por outro lado, existem pessoas tidas como “anormais” que não
praticam qualquer crime. Ressalte-se ainda que, em crimes contra a
ordem econômica ou contra a administração pública, por exemplo,
na maioria das vezes esses delitos são praticados por indivíduos
considerados “normais”.
Portanto,
como se percebe, associar o criminoso a um indivíduo portador de
personalidade patológica é uma perspectiva que não resiste a uma
análise rigorosa. Reduzida a um âmbito clínico-forense, com
limitados objetivos terapêuticos, a pesquisa da “personalidade
criminosa” vem nos últimos tempos perdendo cada vez mais sua
relevância teórica. Sobre
esse aspecto, enfatiza Antonio García-Pablos de Molina:
“Obviamente,
existem infratores anormais, como também existem anormais que não
delinquem. O postulado da normalidade do homem delinquente – e o da
normalidade do crime – só pretende expressar um claro rechaço à
tradicional correlação crime – anormalidade do infrator. Buscar
em alguma misteriosa patologia do delinquente a razão última do
comportamento criminal é uma velha estratégia tranquilizadora.
Estratégia ou pretexto que, por outro lado, carece de apoio real,
pois são tantos os sujeitos “anormais“ que não delinquem como
os “normais” que infringem as leis”. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA;
GOMES, 2006, p. 66).(17)
Sérgio
Salomão Shecaira é ainda mais incisivo, afirmando que “o
criminoso é um ser histórico, real, complexo e enigmático”,
acrescentando ser o delinquente, “na maior parte das vezes, um ser
absolutamente normal”.
“[...]
o criminoso é um ser histórico, real, complexo e enigmático.
Embora seja, na maior parte das vezes, um ser absolutamente normal,
pode estar sujeito as influências do meio (não aos determinismos).
Se for verdade que é condicionado, tem vontade própria e uma
assombrosa capacidade de transcender, de superar o legado que recebeu
e construir seu próprio futuro”. (SHECAIRA, 2004, p. 49).
É
óbvio que inexiste uma explicação única para o fenômeno do
crime. Portanto, uma tentativa de explicação necessariamente deve
se valer de uma pluralidade de proposições. É certo, porém, que
as teorias que se proponham a este objetivo, deslocando aquela ênfase
voltada para a personalidade do indivíduo, devem privilegiar a
situação social respectiva.
A
explicação sobre os motivos pelos quais se cometem crimes,
portanto, deve ser buscada na própria ordem social.
8.
Crime e sociedade
Um
outro questionamento pertinente, como já dito, seria indagar sobre a
influência da pobreza e das dificuldades econômicas como causas do
comportamento criminoso. Tal pensamento nos remete para a segunda
grande corrente que historicamente se desenvolveu nos estudos
criminológicos. Na busca de explicações para o crime, muitos
estudiosos voltaram-se para a compreensão da sociedade, procurando
nos problemas de natureza social a verdadeira causa para aqueles
fenômenos.(18) Assim, pretendia-se conhecer antes a sociedade
criminógena do
que o indivíduo
criminoso.
“[...]
a sociologia criminal terá de, a propósito e em relação com o
crime, problematizar a própria ordem social. Isto é, a explicação
sociológica do crime deverá ser tendencialmente globalizante: para
além e antes da sua explicação no plano do acontecer e dos dados
sociológicos, há que tentar explicá-lo ao nível da própria ordem
social”. (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 243).
Ora,
as estatísticas policiais, mesmo nos nossos dias, sempre mostraram
que a esmagadora maioria dos delitos estaria de alguma forma
vinculada aos chamados “crimes contra o patrimônio”. Até a
violência pessoal, nos chamados “crimes contra a pessoa”, teria
seus motivos mais profundos associados - ainda que remotamente - à
necessidade de recursos materiais para a sobrevivência. Os crimes
patrimoniais, obviamente, estão sempre diretamente vinculados às
necessidades econômico-sociais.
Desta
forma, ao longo das últimas décadas, os estudos criminológicos
passaram a se dedicar à pesquisa do ambiente social, examinando
aspectos como a desagregação familiar, carências materiais,
desorganização urbana e a pobreza. Nesse sentido, essa nova
perspectiva teórica inicialmente vai entender o comportamento
criminoso como sendo resultado, por um lado, de uma precária
identificação do indivíduo com os valores sociais básicos, na
maioria das vezes em razão de falhas educacionais e, por outro lado,
como possível resultado da assimilação de valores sociais
corrompidos. A “pena” a ser aplicada ao indivíduo criminoso,
portanto, fundamentava-se como sendo uma medida corretiva na
esperança da ressocialização.
Posteriormente,
a crítica que se fez a essa nova orientação dos estudos
criminológicos passou a condenar a adoção da ordem vigente -
status
quo -
como critério para o exame do comportamento tido como criminoso, vez
que assim seriam sempre conservadoras as medidas corretivas a serem
aplicadas. Tais medidas seriam sempre repressivas, buscariam se
fundamentar na “lei” e na “ordem”, e assim estariam
continuamente legitimando a ordem vigente. As novas teorias,
portanto, mostravam-se conservadoras, na medida em que não estendiam
suas análises para a crítica da ordem social vigente, cujas
estruturas jurídicas e políticas por si mesmas já seriam fatores
criminógenos.
“[...]
são criminosos (e criminógenos) os sistemas sociais que produzem,
através de suas estruturas econômicas e instituições jurídicas e
políticas do Estado, as condições necessárias e suficientes para
a existência do comportamento criminoso – com a cumplicidade
histórica de criminólogos e juristas tradicionais, que não
questionam essas estruturas [...]” (SANTOS, 2006, p. 51).(19)
Ora,
a pesquisa criminológica estava realizando o seu trabalho a partir
da definição legal
dos
comportamentos criminosos. Entretanto, seria necessário estender o
estudo para a compreensão das estruturas econômico-sociais, fatores
de profunda influência na moldagem das consequentes instituições
políticas e jurídicas ligadas ao controle social.
Uma
reflexão aprofundada revelaria certa vinculação encoberta,
inexplorada, entre o controle do crime e as relações decorrentes da
estratificação social. O controle social efetivado pela polícia e
pela justiça criminal, através da nem
sempre velada ameaça
de prisão, visaria em sua essência garantir a permanência e
continuidade do status
quo vigente,
em todas as suas manifestações.
Ora,
o questionamento que se coloca é a necessidade de situar o crime na
perspectiva histórica global da sociedade, inclusive quanto ao papel
a ser desempenhado pelo controle social, analisando tais fenômenos
em termos de “economia política”, abandonando-se o estudo de
natureza meramente “microssociológica”.
Nesse
sentido, é necessário situar o comportamento criminoso e o controle
social como inseridos no processo social, ligados intimamente a
estrutura material da vida coletiva, da qual decorrem as instituições
legais. Essa postura procura entender o crime e os respectivos
sistemas de controle como fatos decorrentes dos conflitos de
interesses intrinsecamente ligados a formação econômico-social,
estruturada a partir do modo como são criadas as condições
materiais de sobrevivência da sociedade. Assim, a teoria
criminológica procuraria compreender a evolução histórica do
próprio poder estatal, o que lhe permitiria associar as
transformações do controle social através dos tempos com o
desenvolvimento dos mecanismos de poder das elites dominantes.
“Dentre
as principais contribuições teóricas da criminologia crítica está
o fato de que o fundamento mais geral do ato desviado deve ser
investigado junto às bases estruturais econômicas e sociais, que
caracterizam a sociedade na qual vive o autor do delito”.
(SHECAIRA, 2004, p. 357).
É
evidente que as instituições ligadas ao controle criminal, ao
agirem em defesa de determinado modelo de ordem social, poderiam
estar defendendo uma realidade caracterizada pela concentração de
privilégios nos estratos mais elitizados da população, com a
consequente marginalização de outros segmentos. A pesquisa
criminológica, desta maneira, deveria direcionar seus esforços no
sentido de compreender as relações de poder decorrentes da
estrutura produtiva da sociedade, vez que tais circunstâncias acabam
refletidas na configuração jurídica do Estado.
Desse
modo, os comportamentos criminosos poderiam ser interpretados como
resultantes das condições de exploração e de miséria a que
estariam submetidos os segmentos oprimidos da coletividade. Essa
interpretação, em consequência, recupera o entendimento de que as
desigualdades sociais seriam os motivos básicos do comportamento
criminoso.
Assim,
as dificuldades provocadas pela estrutura econômica injusta produzem
problemas como o desemprego, a miséria e, por fim, também o crime.
As desigualdades sociais, desta maneira, podem ser consideradas como
determinantes essenciais do comportamento tido como criminoso.
9.
Os poderosos e os deserdados
No
romance Crime
e castigo,
de Dostoiévski, como vimos, o estudante Raskólnikov
elabora
uma surpreendente teoria criminológica. Nessa sua “teoria do crime
permitido”, o personagem sustenta a tese de que existiriam na
sociedade pessoas “ordinárias” e “extraordinárias”. Para
ele, o indivíduo extraordinário,
supostamente colocado acima das normas morais, estaria legitimado
para cometer crimes. O ordinário,
por outro lado, deveria viver na obediência e serviria apenas para a
procriação. Quando nos deparamos com essa ideia, logo de imediato
consideramos que a mesma seria absurda. Após uma reflexão mais
aprofundada, porém, é com surpresa que constatamos que a realidade
parece acompanhar esse extravagante pensamento.
Ao
analisarem a conduta de indivíduos delinquentes que pertenciam às
elites econômicas ou políticas da sociedade, alguns pesquisadores
do comportamento criminoso constataram perplexos que aqueles que
faziam as leis eram também grandes transgressores dessas mesmas
normas, apresentando tais pessoas das classes dominantes escandalosos
padrões de moralidade. A pesquisa criminológica, desta forma,
revela que o rigor na aplicação das leis varia conforme a posição
do acusado nas diversas camadas da estratificação da sociedade. Por
um lado apresenta-se quase uma verdadeira “imunidade” em relação
às pessoas vinculadas ao poder econômico ou político. Por outro
lado, percebe-se uma sempre crescente criminalização das condutas
dos estratos inferiores do meio social, em especial quanto aos
excluídos do mercado formal de trabalho.
“Numa
síntese muito genérica, o que a criminologia de conflito vem pondo
em relevo é o caráter “de classe” do direito criminal. O
direito criminal não passa de um instrumento de que os grupos
detentores do poder se armam para assegurar e sancionar o triunfo das
suas posições face aos grupos conflituantes. Daí a tendência,
historicamente comprovada, para a criminalização sistemática das
condutas típicas das classes inferiores, ou, noutros termos, das
condutas susceptíveis de pôr em causa os interesses dos grupos
dominantes. Daí, complementarmente, a tradicional resistência do
direito criminal a intervir nas atividades dos detentores do poder,
por mais imorais ou socialmente danosas que tais atividades possam
revelar-se. É, por exemplo, recorrente a denúncia do contraste
entre a legislação, extremamente rarefeita, que pune a
criminalidade de white-collar, e a malha particularmente apertada da
legislação que incrimina as pequenas ofensas contra o patrimônio”.
(DIAS; ANDRADE, 1997, p. 257).
O
estudo das estruturas econômicas e das relações entre os diversos
estratos da sociedade, bem como o estudo das consequentes
instituições políticas e jurídicas do Estado, tudo isso mostra
uma perversa vinculação entre o sistema de controle social e os
interesses das elites dominantes. É o que evidencia a análise das
condutas tidas como criminosas, conforme a posição do indivíduo na
estratificação social. Essa análise até mesmo destrói a
confiabilidade das estatísticas policiais como elementos de aferição
da amplitude das condutas criminosas. Assim, constatou-se até mesmo
ser diversa a intensidade das penas estabelecidas para cada hipótese.
Por um lado, máxima intransigência em relação a condutas de
indivíduos marginalizados e excluídos do ambiente social. Por outro
lado, indecorosa ausência de severidade em relação aos membros da
elite dominante, em especial nos casos de conduta delituosa alusiva a
estrutura econômica da sociedade, como nas hipóteses de
criminalidade financeira.
Nesse
sentido, o estudo dos chamados “crimes do colarinho branco”
mostra que na maioria das vezes resultam impunes as condutas
delituosas de indivíduos ligados ao poder econômico-financeiro ou
político, mesmo que tenham lesado gravemente a coletividade. Vários
fatores colaboram para a verdadeira imunidade dos agentes e para a
ausência de estigmatização dos indivíduos nestes casos. Tais
delitos são praticados no exercício de atividades empresariais ou
políticas, sendo os autores sujeitos de elevado status social. Em
tais atividades estão presentes aspectos de enorme complexidade
jurídica, aos quais certas vezes se agrega até mesmo cumplicidade
de alguma autoridade corrupta.
“Em
consequência, a Criminologia “radical” contesta sistematicamente
a função “legitimadora”, conservadora do status quo que teria
cumprido a Criminologia atual, ao não questionar nem criticar tanto
os processos de definição (criação da lei penal de acordo com os
interesses da classe dominante) como os discriminatórios processos
de seleção (aplicação da lei em prejuízo das classes
oprimidas)”. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 268).
As
estatísticas criminais não registram a conduta criminosa das elites
dominantes. Os “crimes do colarinho branco”, ou as diversas
figuras caracterizadoras do abuso de poder econômico ou político,
entretanto, muitas vezes resultam em danos extremos à coletividade,
lesionando de forma gravíssima o patrimônio estatal ou social. A
exclusão das estatísticas criminais é explicada por estarem essas
condutas lesivas inseridas na estrutura da produção econômica,
sendo os agentes indivíduos pertencentes aos estratos mais elevados
da sociedade, possuidores de poder econômico ou político.
A
conduta criminosa dos poderosos, entretanto, não seria uma
manifestação acidental ou esporádica, mas sim fenômeno
institucionalizado, decorrente da posição elevada que ocupam na
estrutura da estratificação social. Nesse contexto, os mecanismos
de controle social – polícia, justiça criminal, prisão etc –
seriam garantias profundas e intensas de uma sociedade iníqua.
Ora,
os estudos criminológicos tradicionais desenvolviam suas pesquisas a
partir da definição de crime trazida pela legislação penal.
Assim, crime era a conduta que a lei dizia ser criminosa. Estavam
excluídos das fronteiras do estudo, portanto, comportamentos não
definidos pela norma jurídica como sendo criminosos, por mais
lesivos que tais atos fossem. Ficavam excluídas em tais estudos,
desta maneira, condutas como a exploração do trabalho ou as
diversas figuras caracterizadoras de abuso do poder econômico, a
exemplo da fixação monopolista de preços. Deste modo, as hipóteses
criminológicas eram desde o seu ponto de partida condicionadas pelas
elites dominantes, responsáveis pela definição legal dos crimes.
Desta forma, os mecanismos de controle social (policia, justiça
criminal, sistema penitenciário etc) sempre desenvolviam suas
funções trabalhando principalmente, ou quase exclusivamente, com os
indivíduos pobres ou excluídos, que viviam marginalizados da vida
social.
Uma
ilustre Magistrada dos nossos dias definiu com nitidez essa
circunstância: seria a “administração da pobreza”.
“A
proposta para o processo criminalizador (incriminação legal), a
partir da visão crítica, objetiva reduzir as desigualdades de
classe e socais. Esta visão faz repensar toda a política
criminalizadora do Estado, que deve assumir uma criminalização e
penalização da criminalidade das classes sociais dominantes:
criminalidade econômica e política (abuso do poder), práticas
anti-sociais na área de segurança do trabalho, da saúde pública,
do meio ambiente, da economia popular, do patrimônio coletivo
estatal e – não menos importante – contra o crime organizado”.
(SHECAIRA, 2004, p. 358).
Na
medida em que a lei penal expressa os interesses das elites
dominantes, os comportamentos definidos como criminosos na maioria
das vezes são condutas manifestadas pelos segmentos oprimidos e
marginalizados da sociedade. Porém, ao mesmo tempo em que o Estado,
através das suas instituições, legitima a opressão das elites
dominantes, a conduta tida como criminosa apresenta-se como
manifestação do desafio pessoal dos indivíduos excluídos contra
esse poder organizado.
As
desigualdades ocasionadas pelo conflito de interesses entre as várias
camadas da sociedade levam o indivíduo excluído do sistema
produtivo a aceitar correr os riscos derivados do comportamento
criminoso, face à carência advinda das circunstâncias de miséria
ou penúria material. O marginalizado apresenta então elevada
tendência à prática de crimes, vez que é levado a tal situação
em razão da necessidade de assegurar os recursos indispensáveis a
sua própria sobrevivência.
O
indivíduo tido como criminoso, entretanto, tem sua conduta
constantemente utilizada para encobrir os verdadeiros problemas
sociais - que não são imediatamente percebidos pela população em
geral. As pessoas repudiam o criminoso comum, que é insultado e até
agredido por quase todos, inclusive pelos oprimidos. Esse indivíduo
transgressor atrai para si a revolta da população, cuja atenção é
desviada dos problemas reais, que são aqueles advindos das
desigualdades sociais.
O
controle social adota a prisão como seu principal instrumento e traz
a polícia como sua arma mais eficaz. Uma reflexão mais profunda
revela que, na verdade, o objetivo encoberto dessas representações
seria manifestar uma nem
sempre velada intimidação
contra os segmentos da população mantidos em dominação social.
Como é do conhecimento de todos, a repressão policial sempre se
mostrou mais eficiente quando voltada contra as parcelas subalternas
da estratificação social.
Explica
Juarez Cirino dos Santos:
“O
objetivo real mais geral do sistema de justiça criminal – além da
aparência ideológica e da consciência honesta de seus agentes –
é a moralização da classe trabalhadora, através da inculcação
de uma “legalidade de base”: o aprendizado das regras da
propriedade, a disciplina no trabalho produtivo, a estabilidade no
emprego, na família etc”. (SANTOS, 2006, p. 84).
O
sistema de controle social alega defender o “cidadão de bem” ao
enfrentar os criminosos, o que legitimaria o uso da força pelas
instituições estatais. “Será com rigor que o Estado enfrentará
os marginais”, é o que as autoridades repetem quase sempre. Mas,
na verdade, sua verdadeira missão será assegurar a disciplina dos
trabalhadores inseridos no sistema produtivo. Com receio do
desemprego e da marginalização, o operário acorda cedo e se dirige
ao transporte coletivo que o levará até a fábrica onde trabalha. O
medo da prisão garante o controle da força de trabalho, assegurando
a continuidade da estrutura econômico-social imperante.
Assim,
as instituições da sociedade funcionam como se realmente existissem
indivíduos extraordinários,
legitimados para cometer crimes, e outros tantos obrigados a viver na
obediência, servindo apenas para a procriação. É com surpresa,
portanto, que constatamos que a realidade parece acompanhar o
extravagante pensamento do personagem Raskólnikov,
protagonista do romance Crime
e castigo,
de Dostoiévski.
10.
Conclusão
O
presente estudo pretendeu ousar adentrar simultaneamente em dois
universos misteriosos – o crime
e
a literatura.
Com esta intenção, reuniu em um único texto estudos criminológicos
e estudos literários.
Do
ponto de vista metodológico, esta pesquisa defendeu uma adesão
radical a uma concepção interdisciplinar da compreensão da
realidade, fugindo da tradicional divisão estanque entre os diversos
“saberes”.
Neste
sentido, estudou-se o romance Crime
e castigo,
do escritor russo Fiódor Dostoiévski, procurando extrair dessa
experiência reflexões de natureza diversa daquelas normalmente
consideradas como estritamente reservadas à literatura.
Inicialmente,
tentou-se esboçar uma breve análise literária da referida obra.
Depois, extrapolando intencionalmente os limites tradicionais dos
estudos literários, buscou-se proceder a uma análise dos aspectos
criminológicos levantados pelo tema.
Após
tecer considerações sobre os vínculos supostamente existentes
entre crime e eventuais patologias da personalidade individual, o
estudo entendeu que a explicação sobre os motivos pelos quais se
cometem crimes deveria ser buscada na própria ordem social. Assim,
as dificuldades provocadas por uma estrutura econômica injusta
produziriam problemas como o desemprego, a miséria e, por fim,
produziriam também o crime.
O
entendimento a que se chegou, portanto, foi no sentido de que as
desigualdades sociais deveriam ser consideradas como determinantes
essenciais do comportamento tido como criminoso. Desta maneira,
buscou-se analisar como o comportamento criminoso se distribui entre
as diversas camadas da estratificação social, examinando até que
ponto as instituições da sociedade funcionariam como se realmente
existissem indivíduos extraordinários
legitimados
para cometer crimes, enquanto outros tantos eram obrigados a viver na
obediência às diversas normas de conduta.
Desta
forma, este trabalho considera como alcançado o seu objetivo de
demonstrar ser instrutiva e culturalmente enriquecedora a experiência
de ler uma obra literária à luz dos ensinamentos das ciências
criminais. Seguindo a lição de Alfredo Bosi (2003, p. 282),
tratou-se aqui de tentar encontrar na história vivida a força da
palavra, buscando, por outro lado, reconhecer no coração da obra o
que não seria apenas literatura.
Notas
1
- NORONHA, Edgard Magalhães. Direito
penal. 25.
ed. São Paulo: Saraiva, 1987. v.1.
2
- LEITE, Dante Moreira. Psicologia
e literatura. 5.
ed. São Paulo: UNESP, 2002.
3
- BOSI, Alfredo. Céu,
inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2.
ed. São Paulo: Duas Cidades - 34, 2003.
4
- SARTRE, Jean-Paul. Que
é a literatura? 2.
ed. São Paulo: Ática, 1993.
5
- CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios
reunidos: 1942-1978. Rio
de Janeiro: UniverCidade – Topbooks, 1999. v. 1.
6
- CARPEAUX, Otto Maria. História
da literatura ocidental. Rio
de Janeiro: O Cruzeiro, 1959-1966.
7
- BACKTIN, Mikhail. Problemas
da poética de Dostoiévski. 3.
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
8
- MOISÉS, Massaud. A
análise literária. 14.
ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
9
- BEZERRA, Paulo. A
perenidade de Dostoiévski. In:
BERNARDINI, A. F. et al. Fiódor
Dostoiévski: o profeta da literatura russa. São
Paulo: Bregantini, 2006.
10
- DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime
e castigo. (Prestuplenie i nakazanie). Trad. Paulo Bezerra. 4.
ed. São Paulo: 34, 2005.
11
- MARANHÃO, Odon Ramos. Psicologia
do crime. 2.
ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
12
- ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As
três escolas penais: clássica, antropológica e crítica (estudo
comparativo). 8.
ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977.
13
- SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia.
São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
14
- DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia:
o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2.
ed. Coimbra: Coimbra, 1997.
15
- LYRA, Roberto; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Criminologia.
3.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
16
- LIMA, Estácio de. O
mundo estranho dos cangaceiros: ensaio bio-sociológico. Salvador:
Itapoã, 1965.
17
- GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio.
Criminologia:
introdução a seus fundamentos teóricos – introdução às bases
criminológicas da Lei 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais
Criminais. 5.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
18
- BARATTA, Alessandro. Criminologia
crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do
direito penal. 3.
ed. Rio de Janeiro: ICC – Revan, 2002.
19
- SANTOS, Juarez Cirino dos. A
criminologia radical. 2.
ed. Curitiba:
ICPC – Lumen Juris, 2006.
(*Reno
Viana é juiz de direito na Bahia)