domingo, 9 de dezembro de 2018

O CAVALEIRO ELOMAR E A INEXISTENTE MATEMÁTICA

Reno Viana*

(Texto postado na internet em 28 de setembro de 2011)

Esta semana tive a honra de ser convidado para integrar um pequeno grupo de intelectuais que acompanharão o compositor e pensador metafísico Elomar Figueira Mello em uma palestra no curso de matemática da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, aqui na cidade de Vitória da Conquista.

Nesta oportunidade, o músico pretende demonstrar para os interessados que, simplesmente, a matemática não existe.

A tarefa dos ditos intelectuais, pelo visto, será principalmente assegurar a integridade física de Elomar, caso os matemáticos resolvam abandonar o livre debate das ideias abstratas e partir para a violência, em defesa da dignidade da área de conhecimento deles.

De qualquer sorte, este convite para acompanhá-lo nesta empreitada é uma honra muito grande. Sua figura é importantíssima para muita gente, inclusive para mim. É enorme a influência que a sua obra exerceu em nosso imaginário e, por extensão, em nossas vidas.

Para mim, em particular, a aventura pelo universo elomariano começou em 1980, quando a canção dele O peão na amarração concorreu na finalíssima do festival MPB 80 da TV Globo. Foi nessa ocasião que tomei conhecimento de que aqui, no sertão da Bahia, habitava este importante compositor.

Mas a sua trajetória já era relativamente antiga e foi com certo espanto que descobri o estranho estilo da sua música. Foi com dificuldade que aprendi a gostar do LP Das barrancas do Rio Gavião, lançado em 1973 pela gravadora Philips, a mesma de quase todos os grandes nomes da música popular brasileira de então. Na contracapa do disco, impressionava o longo texto explicativo assinado pelo consagrado poeta Vinicius de Morais. Uma das canções do LP, inclusive, fez parte da trilha sonora da telenovela Gabriela, adaptação do romance de Jorge Amado que fez muito sucesso na TV Globo.

Eu não conseguia entender, na época, as razões que levaram Elomar a abandonar as gravadoras multinacionais e a lançar como produção independente, em 1979, o álbum duplo Na quadrada das águas perdidas. Porém, surpreendentemente, esse disco dividiria o prêmio de melhor daquele ano com o álbum Ópera do malandro, do célebre Chico Buarque. Em sua edição do dia 30 de janeiro de 1980, o Jornal do Brasil anuncia que “Elomar, um príncipe da caatinga, tornou-se com dois discos o fenômeno musical da década”.

Depois disso, cada novo disco seu lançado trazia de imediato inúmeras reportagens elogiosas nas principais publicações do país. Suas apresentações recebiam o aplauso unânime de todos os jornais.

No entanto, à medida que se aproximava a virada do século, Elomar ia gradativamente se afastando da chamada MPB e cada vez mais se aproximando da música erudita. Por fim, passou a se dedicar ao que chamava de ópera do sertão, iniciando inclusive a construção do Teatro Domus Operae, localizado na sua fazenda Casa dos Carneiros.

Assim, veloz, o tempo foi passando, os anos se transformando em décadas.

Em 2008, porém, ele surpreenderia novamente ao lançar o belo Sertanílias, inusitado romance de cavalaria em pleno terceiro milênio, com a promessa futura de pelo menos dois novos volumes em continuação.

Ao longo de todo esse período relatado, foi enorme a influência exercida por Elomar em nossas vidas. Ilustra essa verdade os inúmeros livros, as várias teses e as diversas pesquisas que se dedicaram a analisar a sua obra e o alcance da sua presença.

A meu ver, o seu perfil humano e a sua obra, ao negarem radicalmente a cultura oficial vigente, antes de tudo evidenciam uma inequívoca expressão de inconformidade. Trata-se de uma manifestação no campo da arte e da estética daquilo que na sociedade foram o fanatismo religioso e o cangaço. Esses fenômenos, juntamente com a emigração forçada, formam um conjunto de atitudes desesperadas de reação possível contra a opressão de uma paisagem natural e humana de profunda hostilidade, como tem sido na História a realidade do sertão nordestino.

É como uma legítima expressão de inconformidade, por exemplo, que enxergo o singular livro Sertanílias, lançado em 2008, e definido pelo autor com sendo um romance de cavalaria.

Ao ler este livro pela primeira vez, senti novamente o mesmo estranhamento experimentado ao ouvir, há tantos anos, o disco Das barrancas do Rio Gavião. Era a surpresa de me deparar com algo diferente de tudo que já tinha conhecido antes, algo completamente fora dos padrões vigentes. Em uma segunda leitura atenta, entretanto, vi admirado se abrir o portal mágico de acesso ao reino onde habitam os personagens elomarianos, lá na região que ele denomina de Sertão Profundo. Lá na perigosa travessia da Vage dos Trumento, na altura do Laço dos Môra, no território da Quadrada das Águas...

Elomar, ao publicar Sertanílias, repetia trinta anos depois o gesto do conterrâneo Glauber Rocha. O famoso cineasta baiano, já dono de uma das mais importantes obras autorais do cinema mundial, resolve enveredar pelos domínios da literatura e lança em 1978 o polêmico livro Riverão Sussuarana. Esses livros são ambos romances de dificílima compreensão, caso o leitor insista em ignorar as chaves que abrem as portas da interpretação deles.

O segredo, porém, é simples.

Os dois livros são narrativas oníricas, e é assim que devem ser lidos. O método de interpretação deve ser o mesmo empregado para compreensão dos nossos sonhos e dos nossos pesadelos...

É assim, através desse trabalho exegético, que descobrimos que a literatura é também importante processo de conhecimento. Através dela, enquanto expressão de determinado ambiente, podemos chegar a uma interpretação da realidade, obtendo relevante forma de conquista de elevada consciência humana e social.

Nesse sentido, tentando interpretar os sonhos e os pesadelos traduzidos na obra de Elomar, percebemos que ela é legítima expressão das qualidades características das formações pastoris, existentes espalhadas pelo mundo inteiro. Como artista dotado de profunda e original criatividade, muito bom naquilo que faz, ele é dono de um estilo único e inconfundível. Consegue, então, com seu talento genial, converter seus fantasmas interiores em admiráveis e prodigiosos mitos oníricos.

Expressão resultante da formação pastoril do sertão nordestino, assim como os equivalentes fenômenos sociais do fanatismo religioso, do cangaço e da emigração, Sertanílias e seus mitos oníricos constituem também uma evidente manifestação da inconformidade sertaneja.

A obra, dessa forma, é igualmente uma acentuada demonstração de resistência.

A insubmissão que resulta da resistência reforça a nossa identidade cultural. Aprendemos que somos brasileiros do sertão. Compreendemos que somos herdeiros de uma das mais antigas e belas tradições do nosso país. O esforço para compreender essa herança cultural legada pelos nossos antepassados muitas vezes exige estudo profundo e grande erudição, fato que tem no próprio Elomar um exemplo completo.

Por outro lado, ao valorizarmos nossa identidade cultural, em um mundo cada vez mais padronizado e uniforme, afirmamos assim a nossa subjetividade. Essa atitude, por si só, constitui uma recusa à massificação alienante e uma defesa cidadã do indivíduo enquanto pessoa humana diferenciada. Trata-se, dessa forma, sem qualquer dúvida, de um inequívoco ato libertário.

Essas são algumas lições que trazemos do sonho literário para a realidade da vida.

Mas a busca é infinda, não termina nunca.

Por tudo isso, fiquei profundamente envaidecido com a dedicatória que tive a honra de receber do grande compositor.

Para o cavaleiro Reno, esta aparição, fantasmas de uma antiga quadra que bondosos vêm nos visitar neste alfarrábio, pedaços perdidos de um tempo estiolado...! Tão somente isto. Com o abraço fraterno, Elomar. 2011, no minguante de setembro”.

Ao receber o glorioso tratamento de “cavaleiro”, meu sentimento foi o de ter alcançado uma carta patente de sagração, um incontroverso título de cidadania do Sertão Profundo. Sentindo-me verdadeiramente como um dos Doze Pares da França, só me restava então ir ao campo da justa.

Deste modo, cavaleiro Elomar, vamos ao combate. Aceito sua convocação para a luta metafísica contra os infiéis matemáticos, aquela legião de combatentes a serviço da tirania milenar de Euclides, da antiga Alexandria.

Vamos à peleja, ilustre paladino, lá “onde os caminhos se dividiram e os sonhos alçaram voo”...

     (*Reno Viana é juiz de direito na Bahia)

Sertanílias, livro de 2008.

Na Quadrada das Águas Perdidas, álbum de 1979.


DOSTOIÉVSKI, CRIME E SOCIEDADE

Reno Viana*

Texto postado na internet em 27 de fevereiro de 2011, com a seguinte nota do autor: “Dostoiévski e a Bahia, esse deveria ser o título correto desse artigo, segundo alguns amigos que leram o texto em janeiro de 2007, quando foi apresentado em um curso da Escola de Magistrados da Bahia. Nesse trabalho trato do estudante Rodion Románovitch Raskólnikov, protagonista do célebre romance russo Crime e Castigo, mas também escrevo sobre as cabeças cortadas que, na Bahia, eram examinadas pelo médico legista Estácio de Lima, conforme seu sinistro estudo intitulado O mundo estranho dos cangaceiros. Como se sabe, Cabezas cortadas é o título de um dos filmes do nosso conterrâneo Glauber Rocha, cineasta que não é mencionado no texto, mas que estava em minha mente durante toda a redação desse ensaio, escrito em 2006, quando eu atuava como juiz de direito na Vara Criminal de Itapetinga – Bahia”.

1. Introdução

Até poucos anos atrás, quase todos os estudantes brasileiros de direito penal conheciam o difundido manual escrito por Edgard Magalhães Noronha. Nesse livro, ao tratar da evolução histórica das ideias penais, o ilustre jurista utilizava uma metáfora inesquecível, dizendo que o crime era uma sombra sinistra que desde sempre acompanhava o ser humano.

A história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou”. (NORONHA, 1987, p. 20).(1)

Comparando o crime a uma sombra sinistra, o então famoso criminalista fazia uso de um recurso literário. Assim, em seu texto, além de explicitar um conteúdo verdadeiro da matéria penal, servia-se da forma verbal para transmitir beleza estética a quem lia. São poucas as ideias de Noronha que resistiram ao passar do tempo, pois cada dia que passa seu antigo manual fica mais defasado. A imagem literária que empregou, entretanto, é inesquecível e será sempre lembrada.

O presente estudo, partindo desse exemplo de fusão dos “saberes”, pretende ousar adentrar simultaneamente nesses dois universos misteriosos – o crime e a literatura. Trata-se aqui de uma pesquisa de natureza bibliográfica, de caráter interdisciplinar, vinculada a esses temas. Na verdade, busca-se tentar sistematizar leituras pessoais procedidas há vários anos, colocando-se as próprias ideias em ordem. Pretende-se assim fundir em um único texto estudos criminológicos e estudos literários.

Desta forma, este trabalho terá como objetivo demonstrar que é instrutiva e culturalmente enriquecedora a experiência de ler uma obra literária à luz dos ensinamentos das ciências criminais. Nesse sentido, optou-se aqui por estudar o romance Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, buscando extrair dessa experiência reflexões de natureza diversa daquelas normalmente consideradas como estritamente reservadas à literatura.

Assim, pretendemos nesta pesquisa desenvolver dois enfoques principais. Inicialmente, tentar esboçar uma breve análise literária do romance de Fiódor Dostoiévski. Depois, extrapolando intencionalmente os limites tradicionais dos estudos literários, buscar proceder a uma análise dos aspectos criminológicos levantados pelo tema, em especial quanto às relações entre crime, personalidade individual e sociedade.

Do ponto de vista metodológico, a pesquisa pressupõe uma adesão radical a uma concepção interdisciplinar da compreensão da realidade, fugindo da tradicional divisão estanque entre os diversos “saberes”. Pretende-se, portanto, reunir em um todo orgânico concepções advindas da teoria jurídica, da criminologia, das ciências sociais e dos estudos literários.

Quanto ao enfoque jurídico, busca-se um rompimento com o pensamento normativista até ontem absoluto, adotando-se uma visão crítica do fenômeno do direito. Na perspectiva da criminologia e das ciências sociais, busca-se explicitar a experiência de aprendizagem relatada pelo psicanalista Rollo May, que dizia ter aprendido mais sobre o ser humano nos cursos de literatura do que naqueles da sua especialidade científica.

[...] muitos fizemos a estranha descoberta, quando estudantes universitários, de que aprendíamos muito mais psicologia, isto é, aprendíamos muito mais a respeito do homem e de sua experiência, nos cursos de literatura do que nos de psicologia. (MAY apud LEITE, 2002, p. 16)”.(2)

Quanto aos estudos literários, busca-se aplicar aqui a lição do crítico Alfredo Bosi: “A dignidade das Letras não está nelas mesmas, mas no contínuo ir e vir do que está escrito para o que não está escrito” (BOSI, 2003, p. 282). (3) Enfim, busca-se o texto palpitante e a vida que palpita fora dele. O que está escrito e o que não está escrito.

Este, portanto, é o esforço que pretendemos empreender nos tópicos apresentados a seguir.

2. Dignidade da literatura

A literatura é um produto cultural milenar. Essa afirmação constitui um dos poucos pontos em que concordam entre si as muitas teorias que tentaram apresentar um conceito satisfatório desse fenômeno. Há milhares de anos que o ser humano busca se utilizar da linguagem para expressar sua visão das questões que surgem em sua existência, buscando equacionar os problemas apresentados pela vida e refletir sobre a maneira como as pessoas reagem ante os enigmas que a todo o momento lhe são propostos. É muito antiga a tradição literária da humanidade.

Na civilização ocidental, em particular, assistiu-se ao longo dos séculos à formação de um “cânone literário”. Através de critérios os mais diversos, os estudiosos foram selecionando as obras e os escritores que eram considerados os mais importantes de uma época ou de uma nação específica. Os critérios utilizados para se avaliar uma obra literária foram muitos. Seus fundamentos variavam de acordo com as diversas matrizes ideológicas que lhe serviam de inspiração.

Na verdade, ao que parece, desde sempre a produção de obras literárias esteve associada a uma determinada teoria literária. Cada escritor ou cada corrente de escritores sempre teve a lhe guiar um padrão doutrinário que lhe apresentava uma definição sobre o que significava o seu ofício e qual a sua função no ambiente social. Alguns escritores possuíam clara consciência desses padrões, enquanto outros autores eram mais intuitivos. As obras produzidas, entretanto, traziam sempre subjacentes as matrizes teóricas que lhes inspiraram.

Portanto, foram muitas e ainda são muitas as “teorias literárias”. Todas elas tentaram e ainda tentam apresentar um conceito satisfatório para o fenômeno da literatura. No entanto, a tarefa é muito complexa. Para cada argumento apresentado é possível aduzir outros tantos em sentido contrário. O que é a literatura? Essa é uma pergunta que possui muitas respostas. Por isso mesmo, talvez seja um problema para o qual não exista solução plenamente aceitável.

O filósofo e ficcionista francês Jean-Paul Sartre escreveu um célebre ensaio dedicado ao tema. O título da obra era explícito: Qu’est-ce que la littérature? Em português, Que é a literatura? Ele, portanto, procurou de maneira explícita tentar responder a essa pergunta desafiadora. Na verdade, porém, o famoso pensador reconhece a impossibilidade de fornecer uma resposta concludente e satisfatória, deslocando então o foco da questão para outra perspectiva. Segundo Sartre, o importante é saber o que pode ser feito com a literatura, pois para ele “o fazer é revelador do ser”, vez que cada novo gesto desenharia novas figuras sobre a terra. A arte de escrever, portanto, seria aquilo que os homens escolheriam fazer dela. Nesse sentido, para Sartre a literatura deveria ocupar-se da vida das pessoas, procurando refletir sobre o ambiente social, visando transformá-lo: “é pelo livro que os membros dessa sociedade poderiam, a cada momento, situar-se, enxergar-se e enxergar a sua situação”. (SARTRE, 1993, p. 119, 175 e 218).(4)

Adotando esse ponto de vista, o presente trabalho parte do pressuposto de que, ante a impossibilidade teórica de se formular um conceito satisfatório de literatura, a melhor atitude é examinar o que pode ser feito dela. Nesse sentido, busca-se aqui, através da literatura, proceder-se a uma reflexão sobre um dos mais dramáticos aspectos da vida social, que é aquele alusivo ao crime e às suas circunstâncias.

3. Fiódor Dostoiévski

Discorrendo sobre o cânone literário da civilização ocidental, o crítico austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux sustentava que “a literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Ele mesmo, então, passa a relacionar: Dom Juan, Fausto, Hamlet, Dom Quixote, Édipo, Till Eulenspiegel, Sir John Falstaff, o marujo Robinson Crusoé, o farmacêutico M. Homais, o estudante Raskólnikov (CARPEAUX, 1999, p. 116).(5)

No presente trabalho, o que se pretende é discorrer sobre os valores e conteúdos permanentes associados a um dos personagens da literatura ocidental acima relacionados – o estudante Raskólnikov. Sobre a conduta fictícia dele é que versa este estudo. Rodion Románovitch Raskólnikov é o personagem principal do célebre romance Crime e castigo, publicado na Rússia do século XIX pelo escritor Fiódor Dostoiévski.

Unanimemente considerado como um dos principais ficcionistas de toda a história da literatura universal, Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski nasceu em Moscou, na Rússia, em 1821. Cursou engenharia militar e, em 1846, publicou seu primeiro romance. Envolvido com um círculo revolucionário de socialistas utópicos, em 1849 é preso e condenado à morte. Já se encontrava no patíbulo quando soube que sua pena havia sido comutada. Foi então deportado para a Sibéria, onde por cerca de cinco anos esteve submetido ao regime de trabalhos forçados. Segundo Otto Maria Carpeaux, “um crítico daquela época chegou a dizer que Dostoiévski foi doutrinado na sua filosofia político-religiosa pelo chicote” (CARPEAUX, 1959-1966, p. 2533). (6) Epilético, o escritor russo passaria grande parte da sua vida oprimido por dívidas, agravadas pelo vício do jogo. Ele morreria em São Petersburgo, na Rússia, em 1881, deixando uma influência avassaladora sobre toda a literatura mundial.

Dono de vasta obra ficcional, os títulos quase proverbiais dos romances de Dostoiévski incorporaram-se à tradição da cultura internacional. Em 1846 ele lançou Gente pobre; em 1861, Humilhados e ofendidos; em 1862 foi publicado Recordações da casa dos mortos. Após Crime e castigo (1866), ele ainda escreveria outras elogiadas obras: O idiota (1868), Os demônios (1871), O adolescente (1875) etc. O romance Os irmãos Karamázov, de 1880, é por muitos considerada sua obra-prima. Durante vários anos Dostoiévski ocupou-se da obra Diário de um escritor, em que expôs sua crença no cristianismo oriental ortodoxo e na qual manifestou sua adesão a um pan-eslavismo radical e surpreendentemente xenófobo.

Apesar do dramatismo emocional e das tendências místicas, a crítica literária considera a obra dostoievskiana como sendo “pós-romântica” e próxima dos padrões da escola realista-naturalista. Em sua extensa História da literatura ocidental, cujos oito volumes foram publicados entre 1959-1966, Otto Maria Carpeaux trata da obra do escritor russo em um capítulo sugestivamente intitulado “A conversão do naturalismo”. Os estudiosos, entretanto, sustentam a existência de condições históricas específicas na Rússia, país que não conheceu a Antiguidade clássica e que não participou do chamado Renascimento, períodos culturais que são referências fundamentais para o realismo e o naturalismo. Naquele país, então, a escola realista teria apresentado características que destoavam dos traços predominantes nos demais países da Europa. Assim, somente adotando-se uma concepção mais ampla é possível caracterizar como realistas as obras de Dostoiévski e também dos seus compatriotas Lev Tolstói (1828-1910), Anton Tchekhov (1860-1904) e Maksim Górki (1868-1936).

Sobre a obra do escritor russo, leciona Otto Maria Carpeaux:

Pela análise psicológica, os conflitos ideológicos em Dostoiévski viram conflitos dramáticos. É o único escritor da literatura universal, depois de Dante, cuja arte gira apaixonadamente, dir-se-ia freneticamente, em torno de ideias. A base da arte dramática de Dostoiévski é uma antropologia, uma teoria filosófica da natureza humana”. (CARPEAUX, 1959-1966, p. 2538).

Segundo o crítico Mikhail Bakhtin, um dos seus mais respeitados intérpretes, Dostoiévski teria criado o “romance polifônico”, no qual as ideias do escritor são mostradas em confronto com outras, existindo múltiplos ângulos de abordagem do tema, espalhando-se o entrechoque ideológico por todos os planos da obra. Estaria presentes no texto uma multiplicidade de vozes, como se dentro dele existissem outros textos. No “romance polifônico”, cada personagem seria independente e autônomo em relação aos demais, cada um com seu mundo próprio, porém todas as vozes possuindo a mesma situação de igualdade, ante a grande liberdade que o autor conferiria à sua criação, tendo em vista a diversidade social, psicológica e mesmo espiritual a ser apresentada. Segundo Bakhtin, na obra existiriam vários “discursos dialógicos”, continuamente inacabados, vez que sempre alusivos a problemas insolúveis. (BAKHTIN, 2005, p. 11).(7)

Os romances de Dostoiévski são marcados pela profunda análise psicológica, pela busca dos aspectos incomuns da realidade e pela capacidade de fazer com que as ideias ganhem vida através dos seus personagens, estes sempre apresentados em situações extremas.

4. Crime e castigo (o que está escrito)

O romance Crime e castigo (no original, Prestuplenie i nakazanie, ou mais exatamente, no alfabeto cirílico, Престъпление и наказание) foi publicado na Rússia, em 1866. Logo foi traduzido para línguas diversas. Para a língua portuguesa, por exemplo, existem várias traduções da obra. No nosso idioma, entretanto, praticamente todas as traduções são indiretas, ou seja, são traduções de uma outra tradução.

No presente estudo optou-se por trabalhar com uma preciosa tradução feita por Paulo Bezerra, que traduziu o romance direto do original em língua russa. Esta tradução foi publicada pela Editora 34, em São Paulo, no ano de 2001. O texto aqui utilizado é a 4ª edição, em 5ª reimpressão, lançada pela mesma Editora 34, porém no ano de 2005. O tradutor, por sua vez, informa ter trabalhado a partir do texto em russo publicado em 1978 pela Editora Naúka, em Moscou – Leningrado, como tomo VI dos trinta tomos das obras completas de Dostoiévski.

Quando foi publicada a primeira edição do romance, o autor já era um escritor experiente e dominava amplamente os recursos expressivos do seu idioma. Infelizmente, vários aspectos da linguagem ficam prejudicados quando o texto é vertido para outras línguas. Assim, por exemplo, os nomes dos personagens da obra ora tratada apresentam em russo um duplo significado, aspecto que não resiste às traduções.

O romance Crime e castigo é escrito em terceira pessoa, sendo a sua história contada por um narrador onisciente.(8) Esse narrador conhece todos os fatos e situações em que se envolvem os personagens e tem acesso a todas os lugares, até mesmo aos pensamentos. O narrador conta a história pelo ponto de vista do protagonista Raskólnikov, inclusive descrevendo seu estado mental. Será assim em praticamente todo o texto. Em algumas poucas ocasiões, entretanto, adotará o ponto de vista de um ou outro personagem secundário.

Embora o texto não explicite com exatidão, os fatos narrados acontecem por volta de 1860, durante o regime de autocracia czarista. O cenário da história será a cidade de São Petersburgo (que também já se chamou Petrogrado e Leningrado), cidade que então era a capital da Rússia. Utilizada expressivamente como símbolo do estado mental do protagonista, descrita como suja, repugnante e socialmente decadente, a cidade de São Petersburgo será quase que uma personagem da trama criada por Dostoiévski.

A história contada pelo romance é aparentemente simples. Um estudante pobre comete dois assassinatos e depois vai para a prisão. Em duas linhas, esse seria seu enredo. Nos primeiros momentos após ser traduzido para outras línguas, Crime e castigo foi interpretado como sendo um romance policial ambientado em uma terra exótica. Posteriormente surgiram inúmeras outras tentativas de interpretação, que realçaram a profunda complexidade da obra.

Rodion Románovitch Raskólnikov é o protagonista da trama, o personagem principal do livro. Em conformidade com a noção de “romance polifônico” sustentada pelo crítico Mikhail Bakhtin (2005), a obra traz ainda diversas histórias secundárias, construídas em paralelo ao seu tema central. Tendo em vista os objetivos visados no presente trabalho, vamos concentrar nossa análise na história central. Assim, o protagonista Raskólnikov é apresentado como sendo um estudante que vive em extrema pobreza na cidade russa de São Petersburgo. O escritor Dostoiévski praticamente não descreveu a aparência exterior do personagem, embora ao longo do texto mostre com perfeição os mais profundos movimentos da sua mente. Raskólnikov é inteligente e ele próprio, em alguns momentos, considera-se um gênio, apresentando certos sintomas de megalomania. Seu comportamento revela aspectos neuróticos, sendo que em alguns momentos age de maneira altruísta, apresentando-se outras vezes extremamente apático.

Sabe-se que, tradicionalmente, um drama constrói-se pelo enfrentamento entre o protagonista (personagem principal) e o seu antagonista (o “vilão”, digamos assim). Desta forma, o personagem antagonista contesta ou desafia o personagem principal, opondo-se aos seus desejos ou ao seu destino. No romance Crime e castigo, o antagonista é a própria consciência do estudante Raskólnikov. Ele planeja assassinar Aliena Ivánovna, viúva que explora outras pessoas através da prática da agiotagem, emprestando dinheiro a juros. Conquanto desprezível, essa personagem pouco aparece na trama, vez que seu assassinato é descrito ainda na parte inicial da obra. Também é vítima de assassinato Lisavieta Ivánovna, irmã da agiota, porém a mesma é morta apenas porque chega acidentalmente ao local em que ocorria o primeiro crime. Por outro lado, são também secundários os personagens Lújin e Svidrigáilov, figuras burguesas desprezadas pelo estudante Raskólnikov. Embora sagaz e astuto, é também personagem secundário na trama o juiz de instrução Porfiri Pietróvitch, espécie de detetive que investiga os assassinatos. Assim, o papel do antagonista é desempenhado pela própria consciência do personagem principal. Apesar do título do romance, apenas no epílogo da obra é rapidamente mencionado o castigo formal a que Raskólnikov teria que se submeter. Dostoiévski, porém, escreveu centenas de páginas descrevendo o drama psicológico que se passa na mente do autor dos delitos. Nesse contexto de sofrimento psíquico é que serão narradas as relações entre Raskólnikov e sua mãe Pulkhéria, sua irmã Dúnietchka e seu melhor amigo Razumíkhin.

Em razão das idéias trabalhadas por Dostoiévski, personagem de importância fundamental será Sófia Semeónovna Marmieládova, também chamada no texto simplesmente de Sônia. Filha de um bêbado contumaz, ela passa a exercer a prostituição para poder garantir o sustento dos seus familiares, mantendo-se porém fortemente religiosa. Ela será a primeira pessoa a quem Raskólnikov confessará a autoria dos delitos. Sônia incentivará o estudante a se entregar às autoridades policiais e o acompanhará até a Sibéria, onde ele cumprirá pena de oito anos de trabalhos forçados (“galés”). Vale ressaltar que a pena aplicada no caso foi relativamente pequena, vez que o autor dos delitos foi beneficiado pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes alusivas ao modo como foram praticados os crimes e também alusivas à “personalidade patológica” do agente.

Através da conduta de Sônia, o escritor Dostoiévski vai apresentar suas ideias sobre a mística cristã e sobre a redenção pelo sofrimento, considerando que o ato de sofrer teria o efeito de purificar o espírito humano. A personagem levará Raskólnikov a se arrepender sinceramente dos crimes que cometera e, mais do que isto, ela levará o estudante a abandonar as ideias em razão das quais praticou os delitos.

Desta forma, o clímax da narrativa ocorre no momento em que Raskólnikov confessa perante as autoridades a autoria dos delitos, após páginas e mais páginas de descrição do seu drama psicológico íntimo.

Paulo Bezerra, tradutor e professor de literatura russa, aponta que Dostoiévski buscava sempre apresentar seus personagens em situações extremas:

Um dos componentes centrais da composição em Dostoiévski é o limite: alguém impôs um limite ao homem, cabe-lhe parar diante dele e igualar-se ao resto da manada ou ultrapassá-lo, ainda que à custa de terríveis sacrifícios [...] Dostoiévski representa a personagem central às vésperas de uma mudança radical em sua vida, capaz de mudar seu caráter ou destruí-lo. Daí o limite. Mas o homem desconsidera quem lhe impôs esse limite e o ultrapassa”. (BEZERRA, 2006, p. 08).(9)

O tema principal do romance ora analisado, obviamente, é o crime. Essa temática, entretanto, será mostrada de forma extremamente complexa, envolvendo noções alusivas aos limites impostos pelos princípios morais e religiosos. O “castigo” mencionado no título da obra não parece se referir à “pena” formal imposta pelas instituições de controle social. A maneira como o texto é construído faz com que esse conceito se aproxime mais da ideia de “culpa”, conforme sentido religioso cultivado pela tradição judaico-cristã. Assim, o verdadeiro tema abordado por Dostoiévski parece se situar em um patamar mais alto, próximo às noções filosóficas alusivas ao “bem” e o “mal”, e à liberdade do ser humano para fazer as suas escolhas respectivas.

5. Ordinários e extraordinários

Segundo a narrativa do romance Crime e castigo, o personagem Raskólnikov era estudante de direito. Antes de cometer os dois assassinatos, ele elabora uma surpreendente teoria sobre o crime, que chega a expor em um artigo publicado em ocasião anterior aos fatos narrados.

Aproximadamente no ponto médio da narrativa, o romance traz uma cena em que o estudante Raskólnikov tenta explicar ao juiz de instrução Porfiri Pietróvitch sua “teoria do crime permitido”. Diz o texto, conforme a tradução de Paulo Bezerra:

- E como foi que o senhor soube que o artigo era meu? Foi assinado com iniciais [...] Pelo que me lembro, tratei do estado psicológico do criminoso durante todo o ato do crime.
- Sim, e o senhor insiste em que o ato de execução de um crime sempre é acompanhado de uma doença. Muito, muito original, no entanto... a mim propriamente não foi essa parte do seu artigo que me interessou e sim um certo pensamento emitido no final do artigo [...]” (DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 267).(10)

Um pouco adiante, o juiz de instrução Porfiri Pietróvitch fala aos demais personagens que participam da cena sobre a teoria de Raskólnikov a respeito da existência de pessoas “ordinárias” e “extraordinárias”:

- Toda a questão consiste em que, no artigo dele, todas os indivíduos se dividiriam em ordinários e extraordinários. Os ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de infringir a lei porque eles, vejam só, são ordinários. Já os extraordinários têm o direito de cometer toda sorte de crimes e infringir a lei de todas as maneiras precisamente porque são extraordinários”. (DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 268).

O estudante Raskólnikov passa então a explicar suas ideias:

- [...] Eu insinuei pura e simplesmente que o homem extraordinário tem o direito... ou seja, não o direito oficial, mas ele mesmo tem o direito de permitir à sua consciência passar... por cima de diferentes obstáculos, e unicamente no caso em que a execução da sua ideia (às vezes salvadora, talvez, para toda a humanidade) o exija [...] Acho que se as descobertas que Kepler e Newton fizeram, como resultado de certas combinações, não pudessem chegar de maneira nenhuma ao conhecimento dos homens senão com o sacrifício da vida de um, dez, cem e mais homens, que impediriam tais descobertas ou lhes seriam um obstáculo, Newton teria o direito, e estaria inclusive obrigado, a... eliminar esses dez ou cem homens para levar suas descobertas ao conhecimento de toda a humanidade”. (DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 268-269).

Em um longo discurso, o estudante Raskólnikov prossegue explicando seu pensamento:

- [...] os indivíduos, por lei da natureza, dividem-se geralmente em duas categorias: uma inferior (a dos ordinários), isto é, por assim dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes; e propriamente os indivíduos, ou seja, os dotados de dom ou talento para dizer em seu meio a palavra nova [...] Mas se um deles, para realizar sua ideia, precisar passar por cima ainda que seja de um cadáver, de sangue, a meu ver ele pode se permitir, no seu interior, na sua consciência passar por cima do sangue [...]” (DOSTOIÉVSKI, 2005, p. 269-270).

Em sua “teoria do crime permitido”, portanto, Raskólnikov sustenta a existência de crimes cometidos por questão de “consciência” e “necessidade histórica”, considerando que os indivíduos socialmente nocivos deveriam ser exterminados. Assim, a classe dos “extraordinários” seria constituída por verdadeiros “super-homens”, raça superior à massa dos simples mortais comuns.

Essas considerações, bem como as transcrições acima do texto do romance Crime e castigo, serão relevantes para o objetivo central do presente trabalho, conforme será evidenciado nos tópicos seguintes deste estudo.

6. Leitura e reflexões (o que não está escrito)

Sustentou-se neste trabalho, desde o inicio, ser possível um estudo interdisciplinar que, rompendo os limites tradicionais das diversas áreas de conhecimento, buscasse nos estudos literários subsídios para uma reflexão aprofundada sobre aspectos da realidade social.

Nesse sentido, a narrativa do escritor Dostoiévski oferece várias possibilidades de leitura. Por exemplo, ante a longa descrição do estado psicológico do protagonista, um dos questionamentos possíveis seria sobre a possibilidade de que os crimes tratados tivessem resultado de uma personalidade doentia. Mas, indaga-se, até que ponto patologias da personalidade podem ser entendidas como causadoras de crimes?

Por outro lado, o texto de Crime e castigo menciona que, após cometer os assassinatos, o estudante Raskólnikov subtrai alguns objetos de valor da vítima Aliena Ivánovna. Por sua vez, essa vítima é descrita como pessoa que explorava outros financeiramente. Desta maneira, outro questionamento pertinente seria indagar sobre a influência da pobreza e das dificuldades econômicas como causas do comportamento criminoso.

Um dos eixos dramáticos fundamentais do romance ora estudado é o difícil reconhecimento pelo protagonista da trama ficcional de que teria efetivamente cometido crimes. Durante quase toda narração ele não admitirá isso, considerando sua conduta como justificada, vez que a velha usurária não seria um ser humano que merecesse viver. Ele, na verdade, teria fracassado porque era fraco e medíocre – um ordinário, segundo sua própria teoria. Ora, admitamos que a velha usurária fosse uma criatura desprezível e que realmente não merecesse viver. A reflexão que se impõe é sobre quem teria o direito de matá-la. O estudante Raskólnikov, caso fosse um gênio extraordinário, um indivíduo supostamente colocado acima das normas morais, estaria legitimado para tal encargo?

No texto do romance, Dostoiévski busca um desfecho inspirado na espiritualidade mística do cristianismo, encaminhando o seu personagem a uma regeneração dentro da tradição religiosa. Fora do texto literário – no âmbito do que não está escrito, segundo a lição de Alfredo Bosi (2003, pág. 282) – nessa dimensão restam reflexões cujo equacionamento requer o subsídio de outras esferas de estudo. Afinal, pergunta-se, o que é o crime? Tentando buscar uma resposta para essa tormentosa indagação, ou ao menos tentando se aproximar de um caminho que talvez levasse a uma resposta, o presente trabalho formula a seguir algumas reflexões sobre o comportamento delinquente e suas relações com a personalidade individual e com as desigualdades sociais.

7. Crime e personalidade

Como já escrito acima, é possível questionar até que ponto patologias da personalidade podem ser entendidas como causadoras de crimes.(11) Estudiosos do passado afirmavam que o crime seria o resultado da mal sucedida domesticação desse animal selvagem chamado homem. Um animal de alta periculosidade, pois, além de violento, possuiria a habilidade de raciocinar de forma abstrata. Essa afirmação, conquanto evidentemente exagerada, nos leva a refletir sobre a pessoa do criminoso, analisando as relações entre o crime e a personalidade individual.

Na verdade, a ênfase na busca do conhecimento dos traços definidores da personalidade do indivíduo criminoso tornou-se, ao longo do tempo, uma forte corrente dos estudos criminológicos. Poderíamos até afirmar que esses estudos se desdobraram em duas grandes linhas de pesquisa. Uma delas seria aquela que busca uma abordagem sociológica do crime, considerando este como uma manifestação da vida coletiva em sociedade. A outra grande vertente seria aquela que se debruça sobre o indivíduo criminoso, tentando através do conhecimento da sua personalidade descobrir as razões da sua conduta.

São historicamente volumosos os estudos daqueles que buscaram conhecer o indivíduo criminoso.(12) Alguns desses pesquisadores se tornariam célebres, como é o caso do famoso Cesare Lombroso (1835-1909), que em busca do perfil do “criminoso nato” praticamente tornou-se criador da chamada “antropologia criminal”. Mais tarde, despidas dos preconceitos lombrosianos, mas na mesma perspectiva metodológica centrada no indivíduo, novas disciplinas surgiriam, como é o caso da chamada “criminologia clínica”. Herdeiros das pesquisas lombrosianas, alguns médicos e psiquiatras pretenderam com seus exames periciais e clínicos monopolizar as tarefas alusivas à prevenção e repressão criminal.

Sérgio Salomão Shecaira descreve com exatidão esse ponto de vista:

O infrator era um prisioneiro de sua própria patologia (determinismo biológico), ou de processos causais alheios (determinismo social). Era ele um escravo de sua carga hereditária: um animal selvagem e perigoso, que tinha uma regressão atávica e que, em muitas oportunidades, havia nascido criminoso [...] Muitos se dividiram entre a pena proporcional ao mal causado (proposta pelos clássicos) e a medida de segurança com finalidade curativa, por tempo indeterminado, enquanto persistisse a patologia [...]” (SHECAIRA, 2004, p. 48).(13)

Essa perspectiva teórica centrada no indivíduo sempre foi muito forte, sobrevivendo até os dias atuais. Assim, por exemplo, em uma obra sugestivamente intitulada Crime and personality, o psicólogo Hans Jürgen Eysenck expôs a sua teoria do condicionamento, explicação psicodinâmica do comportamento delinquente:

Numa revisão sumária das teorias e fatos ligados à criminalidade, podemos dizer que, tal como o melancólico de Galeno, com sua combinação de introversão e alta versatilidade emocional, corresponde à maioria dos neuróticos da nossa sociedade, o colérico, extrovertido e fortemente emotivo corresponde ao moderno criminoso”. (EYSENCK apud DIAS; ANDRADE, 1997, p. 213).(14)

No estado da Bahia, terra natal do autor do presente trabalho, as ideias acima expostas influenciaram intensamente três ilustres médicos legistas, figuras históricas que depois emprestariam seus nomes a inúmeros logradouros públicos, instituições psiquiátricas e institutos de polícia técnica. São eles: Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto e Estácio de Lima.

Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), conquanto Maranhense, foi professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1894 publicou o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, obra citada inclusive pelo próprio Cesare Lombroso, que passou a considerar o estudioso brasileiro como apóstolo da “antropologia criminal” na América do Sul. Tendo sustentado a necessidade da perícia psiquiátrica nos tribunais, suas ideias nos dias de hoje parecem absurdamente racistas: “O negro é rixoso, violento nas suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez, e esse fundo de caráter imprime o seu cunho na criminalidade colonial atual”, escreveu ele (NINA RODRIGUES apud SHECAIRA, 2004, p. 107). Conforme estranha versão noticiada pelo jurista Roberto Lyra, “a morte de Nina Rodrigues foi atribuída à vingança de deuses negros pela profanação de seus segredos” (LYRA, 1992, p. 98).(15)

Nascido em Lençóis, no interior baiano, Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) foi também professor da Faculdade de Medicina da Bahia. Foi ainda deputado federal eleito pela Bahia. Em 1903 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a lecionar na Faculdade de Medicina local. Além de inúmeros estudos científicos, escreveu várias obras de ficção, tendo pertencido à Academia Brasileira de Letras, instituição que chegou a presidir. Segundo Enrico Ferri (1856-1929), sucessor e continuador do pensamento de Cesare Lombroso, a obra de Afrânio Peixoto manifestava adesões pelo menos relativas ao pensamento lombrosiano (SHECAIRA, 2004, p. 108).

Embora alagoano, Estácio Luiz Valente de Lima (1897-1997) foi também professor catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia. Admirador e discípulo de Nina Rodrigues, durante muitos anos foi guardião das cabeças degoladas de, dentre outros, Virgulino Ferreira da Silva, Maria Gomes de Oliveira e Cristiano Gomes da Silva Cleto, indivíduos mais conhecidos por suas alcunhas legendárias - Lampião, Maria Bonita e Corisco, respectivamente. Essas pessoas, como se sabe, tornaram-se figuras míticas do chamado “cangaço”, conhecida luta armada travada no nordeste brasileiro até a primeira metade do século XX, envolvendo tropas do governo e bandos de camponeses rebelados. Em 1965, Estácio de Lima publica o livro O mundo estranho dos cangaceiros. Apesar de lançada quando as ideias de Cesare Lombroso já eram violentamente criticadas, essa obra não consegue esconder as profundas influências da “antropologia criminal”. Bastante ilustrado com fotografias de cabeças mumificadas e radiografadas, o livro de Estácio de Lima lamenta a impossibilidade do cotejo das suas peças com outras cabeças degoladas no passado.

É pena que umas tantas documentações de caráter antropológico, recolhidas pelo Professor Nina Rodrigues, no seu tempo, inclusive a cabeça de Antônio Conselheiro, o Bom Jesus de Canudos, e o crânio de Lucas da Feira, o lúgubre e famigerado escravo assassino, houvessem desaparecido no braseiro e nas chamas que destruíram a Faculdade de Medicina da Bahia, no começo do século. Agora, poderíamos tudo confrontar”. (LIMA, 1965, p. 304).(16)

Por fim, Estácio de Lima faz expressa referência a Cesare Lombroso, deixando explícita a sua influência.

De qualquer sorte, não é lícito falarmos de “estigmas”, no sentido da antiga doutrina de Lombroso, quando nos defrontamos com um cangaceiro, vivo ou morto. O mestre italiano, se acaso ainda vivesse, ficaria decepcionado visitando o nosso Museu, ou convivendo com os velhos bandoleiros, pois não encontraria os caracteres assinalados no seu criminoso nato”. (LIMA, 1965, p. 305).

Mas voltando a tratar da “teoria do condicionamento”, já acima referida, os professores Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade trazem argumento que fere de morte essa corrente e todas as suas similares, quando dizem que “o problema que se põe a Eysenck é, pois, o problema típico das teorias psicodinâmicas: saber porque é que, apesar de tudo, a generalidade das pessoas não comete crimes” (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 210).

Ora, todo esse esforço dos pesquisadores acima mencionados sempre foi no sentido de encontrar quais seriam as “causas” do crime. Os resultados dessa pesquisa, entretanto, sempre foram insatisfatórios. Ficou-se longe de se atingir uma explicação que esclarecesse a dinâmica do fenômeno e estabelecesse quais suas condições gerais de ocorrência.

De um modo geral, a abordagem centrada no indivíduo delinquente considera que o mesmo seja um “anormal”. Evidentemente, existem criminosos que são portadores de alguma anormalidade. Entretanto, por outro lado, existem pessoas tidas como “anormais” que não praticam qualquer crime. Ressalte-se ainda que, em crimes contra a ordem econômica ou contra a administração pública, por exemplo, na maioria das vezes esses delitos são praticados por indivíduos considerados “normais”.

Portanto, como se percebe, associar o criminoso a um indivíduo portador de personalidade patológica é uma perspectiva que não resiste a uma análise rigorosa. Reduzida a um âmbito clínico-forense, com limitados objetivos terapêuticos, a pesquisa da “personalidade criminosa” vem nos últimos tempos perdendo cada vez mais sua relevância teórica. Sobre esse aspecto, enfatiza Antonio García-Pablos de Molina:

Obviamente, existem infratores anormais, como também existem anormais que não delinquem. O postulado da normalidade do homem delinquente – e o da normalidade do crime – só pretende expressar um claro rechaço à tradicional correlação crime – anormalidade do infrator. Buscar em alguma misteriosa patologia do delinquente a razão última do comportamento criminal é uma velha estratégia tranquilizadora. Estratégia ou pretexto que, por outro lado, carece de apoio real, pois são tantos os sujeitos “anormais“ que não delinquem como os “normais” que infringem as leis”. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 66).(17)

Sérgio Salomão Shecaira é ainda mais incisivo, afirmando que “o criminoso é um ser histórico, real, complexo e enigmático”, acrescentando ser o delinquente, “na maior parte das vezes, um ser absolutamente normal”.

[...] o criminoso é um ser histórico, real, complexo e enigmático. Embora seja, na maior parte das vezes, um ser absolutamente normal, pode estar sujeito as influências do meio (não aos determinismos). Se for verdade que é condicionado, tem vontade própria e uma assombrosa capacidade de transcender, de superar o legado que recebeu e construir seu próprio futuro”. (SHECAIRA, 2004, p. 49).

É óbvio que inexiste uma explicação única para o fenômeno do crime. Portanto, uma tentativa de explicação necessariamente deve se valer de uma pluralidade de proposições. É certo, porém, que as teorias que se proponham a este objetivo, deslocando aquela ênfase voltada para a personalidade do indivíduo, devem privilegiar a situação social respectiva.

A explicação sobre os motivos pelos quais se cometem crimes, portanto, deve ser buscada na própria ordem social.

8. Crime e sociedade

Um outro questionamento pertinente, como já dito, seria indagar sobre a influência da pobreza e das dificuldades econômicas como causas do comportamento criminoso. Tal pensamento nos remete para a segunda grande corrente que historicamente se desenvolveu nos estudos criminológicos. Na busca de explicações para o crime, muitos estudiosos voltaram-se para a compreensão da sociedade, procurando nos problemas de natureza social a verdadeira causa para aqueles fenômenos.(18) Assim, pretendia-se conhecer antes a sociedade criminógena do que o indivíduo criminoso.

[...] a sociologia criminal terá de, a propósito e em relação com o crime, problematizar a própria ordem social. Isto é, a explicação sociológica do crime deverá ser tendencialmente globalizante: para além e antes da sua explicação no plano do acontecer e dos dados sociológicos, há que tentar explicá-lo ao nível da própria ordem social”. (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 243).

Ora, as estatísticas policiais, mesmo nos nossos dias, sempre mostraram que a esmagadora maioria dos delitos estaria de alguma forma vinculada aos chamados “crimes contra o patrimônio”. Até a violência pessoal, nos chamados “crimes contra a pessoa”, teria seus motivos mais profundos associados - ainda que remotamente - à necessidade de recursos materiais para a sobrevivência. Os crimes patrimoniais, obviamente, estão sempre diretamente vinculados às necessidades econômico-sociais.

Desta forma, ao longo das últimas décadas, os estudos criminológicos passaram a se dedicar à pesquisa do ambiente social, examinando aspectos como a desagregação familiar, carências materiais, desorganização urbana e a pobreza. Nesse sentido, essa nova perspectiva teórica inicialmente vai entender o comportamento criminoso como sendo resultado, por um lado, de uma precária identificação do indivíduo com os valores sociais básicos, na maioria das vezes em razão de falhas educacionais e, por outro lado, como possível resultado da assimilação de valores sociais corrompidos. A “pena” a ser aplicada ao indivíduo criminoso, portanto, fundamentava-se como sendo uma medida corretiva na esperança da ressocialização.

Posteriormente, a crítica que se fez a essa nova orientação dos estudos criminológicos passou a condenar a adoção da ordem vigente - status quo - como critério para o exame do comportamento tido como criminoso, vez que assim seriam sempre conservadoras as medidas corretivas a serem aplicadas. Tais medidas seriam sempre repressivas, buscariam se fundamentar na “lei” e na “ordem”, e assim estariam continuamente legitimando a ordem vigente. As novas teorias, portanto, mostravam-se conservadoras, na medida em que não estendiam suas análises para a crítica da ordem social vigente, cujas estruturas jurídicas e políticas por si mesmas já seriam fatores criminógenos.

[...] são criminosos (e criminógenos) os sistemas sociais que produzem, através de suas estruturas econômicas e instituições jurídicas e políticas do Estado, as condições necessárias e suficientes para a existência do comportamento criminoso – com a cumplicidade histórica de criminólogos e juristas tradicionais, que não questionam essas estruturas [...]” (SANTOS, 2006, p. 51).(19)

Ora, a pesquisa criminológica estava realizando o seu trabalho a partir da definição legal dos comportamentos criminosos. Entretanto, seria necessário estender o estudo para a compreensão das estruturas econômico-sociais, fatores de profunda influência na moldagem das consequentes instituições políticas e jurídicas ligadas ao controle social.

Uma reflexão aprofundada revelaria certa vinculação encoberta, inexplorada, entre o controle do crime e as relações decorrentes da estratificação social. O controle social efetivado pela polícia e pela justiça criminal, através da nem sempre velada ameaça de prisão, visaria em sua essência garantir a permanência e continuidade do status quo vigente, em todas as suas manifestações.

Ora, o questionamento que se coloca é a necessidade de situar o crime na perspectiva histórica global da sociedade, inclusive quanto ao papel a ser desempenhado pelo controle social, analisando tais fenômenos em termos de “economia política”, abandonando-se o estudo de natureza meramente “microssociológica”.

Nesse sentido, é necessário situar o comportamento criminoso e o controle social como inseridos no processo social, ligados intimamente a estrutura material da vida coletiva, da qual decorrem as instituições legais. Essa postura procura entender o crime e os respectivos sistemas de controle como fatos decorrentes dos conflitos de interesses intrinsecamente ligados a formação econômico-social, estruturada a partir do modo como são criadas as condições materiais de sobrevivência da sociedade. Assim, a teoria criminológica procuraria compreender a evolução histórica do próprio poder estatal, o que lhe permitiria associar as transformações do controle social através dos tempos com o desenvolvimento dos mecanismos de poder das elites dominantes.

Dentre as principais contribuições teóricas da criminologia crítica está o fato de que o fundamento mais geral do ato desviado deve ser investigado junto às bases estruturais econômicas e sociais, que caracterizam a sociedade na qual vive o autor do delito”. (SHECAIRA, 2004, p. 357).

É evidente que as instituições ligadas ao controle criminal, ao agirem em defesa de determinado modelo de ordem social, poderiam estar defendendo uma realidade caracterizada pela concentração de privilégios nos estratos mais elitizados da população, com a consequente marginalização de outros segmentos. A pesquisa criminológica, desta maneira, deveria direcionar seus esforços no sentido de compreender as relações de poder decorrentes da estrutura produtiva da sociedade, vez que tais circunstâncias acabam refletidas na configuração jurídica do Estado.

Desse modo, os comportamentos criminosos poderiam ser interpretados como resultantes das condições de exploração e de miséria a que estariam submetidos os segmentos oprimidos da coletividade. Essa interpretação, em consequência, recupera o entendimento de que as desigualdades sociais seriam os motivos básicos do comportamento criminoso.

Assim, as dificuldades provocadas pela estrutura econômica injusta produzem problemas como o desemprego, a miséria e, por fim, também o crime. As desigualdades sociais, desta maneira, podem ser consideradas como determinantes essenciais do comportamento tido como criminoso.

9. Os poderosos e os deserdados

No romance Crime e castigo, de Dostoiévski, como vimos, o estudante Raskólnikov elabora uma surpreendente teoria criminológica. Nessa sua “teoria do crime permitido”, o personagem sustenta a tese de que existiriam na sociedade pessoas “ordinárias” e “extraordinárias”. Para ele, o indivíduo extraordinário, supostamente colocado acima das normas morais, estaria legitimado para cometer crimes. O ordinário, por outro lado, deveria viver na obediência e serviria apenas para a procriação. Quando nos deparamos com essa ideia, logo de imediato consideramos que a mesma seria absurda. Após uma reflexão mais aprofundada, porém, é com surpresa que constatamos que a realidade parece acompanhar esse extravagante pensamento.

Ao analisarem a conduta de indivíduos delinquentes que pertenciam às elites econômicas ou políticas da sociedade, alguns pesquisadores do comportamento criminoso constataram perplexos que aqueles que faziam as leis eram também grandes transgressores dessas mesmas normas, apresentando tais pessoas das classes dominantes escandalosos padrões de moralidade. A pesquisa criminológica, desta forma, revela que o rigor na aplicação das leis varia conforme a posição do acusado nas diversas camadas da estratificação da sociedade. Por um lado apresenta-se quase uma verdadeira “imunidade” em relação às pessoas vinculadas ao poder econômico ou político. Por outro lado, percebe-se uma sempre crescente criminalização das condutas dos estratos inferiores do meio social, em especial quanto aos excluídos do mercado formal de trabalho.

Numa síntese muito genérica, o que a criminologia de conflito vem pondo em relevo é o caráter “de classe” do direito criminal. O direito criminal não passa de um instrumento de que os grupos detentores do poder se armam para assegurar e sancionar o triunfo das suas posições face aos grupos conflituantes. Daí a tendência, historicamente comprovada, para a criminalização sistemática das condutas típicas das classes inferiores, ou, noutros termos, das condutas susceptíveis de pôr em causa os interesses dos grupos dominantes. Daí, complementarmente, a tradicional resistência do direito criminal a intervir nas atividades dos detentores do poder, por mais imorais ou socialmente danosas que tais atividades possam revelar-se. É, por exemplo, recorrente a denúncia do contraste entre a legislação, extremamente rarefeita, que pune a criminalidade de white-collar, e a malha particularmente apertada da legislação que incrimina as pequenas ofensas contra o patrimônio”. (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 257).

O estudo das estruturas econômicas e das relações entre os diversos estratos da sociedade, bem como o estudo das consequentes instituições políticas e jurídicas do Estado, tudo isso mostra uma perversa vinculação entre o sistema de controle social e os interesses das elites dominantes. É o que evidencia a análise das condutas tidas como criminosas, conforme a posição do indivíduo na estratificação social. Essa análise até mesmo destrói a confiabilidade das estatísticas policiais como elementos de aferição da amplitude das condutas criminosas. Assim, constatou-se até mesmo ser diversa a intensidade das penas estabelecidas para cada hipótese. Por um lado, máxima intransigência em relação a condutas de indivíduos marginalizados e excluídos do ambiente social. Por outro lado, indecorosa ausência de severidade em relação aos membros da elite dominante, em especial nos casos de conduta delituosa alusiva a estrutura econômica da sociedade, como nas hipóteses de criminalidade financeira.

Nesse sentido, o estudo dos chamados “crimes do colarinho branco” mostra que na maioria das vezes resultam impunes as condutas delituosas de indivíduos ligados ao poder econômico-financeiro ou político, mesmo que tenham lesado gravemente a coletividade. Vários fatores colaboram para a verdadeira imunidade dos agentes e para a ausência de estigmatização dos indivíduos nestes casos. Tais delitos são praticados no exercício de atividades empresariais ou políticas, sendo os autores sujeitos de elevado status social. Em tais atividades estão presentes aspectos de enorme complexidade jurídica, aos quais certas vezes se agrega até mesmo cumplicidade de alguma autoridade corrupta.

Em consequência, a Criminologia “radical” contesta sistematicamente a função “legitimadora”, conservadora do status quo que teria cumprido a Criminologia atual, ao não questionar nem criticar tanto os processos de definição (criação da lei penal de acordo com os interesses da classe dominante) como os discriminatórios processos de seleção (aplicação da lei em prejuízo das classes oprimidas)”. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2006, p. 268).

As estatísticas criminais não registram a conduta criminosa das elites dominantes. Os “crimes do colarinho branco”, ou as diversas figuras caracterizadoras do abuso de poder econômico ou político, entretanto, muitas vezes resultam em danos extremos à coletividade, lesionando de forma gravíssima o patrimônio estatal ou social. A exclusão das estatísticas criminais é explicada por estarem essas condutas lesivas inseridas na estrutura da produção econômica, sendo os agentes indivíduos pertencentes aos estratos mais elevados da sociedade, possuidores de poder econômico ou político.

A conduta criminosa dos poderosos, entretanto, não seria uma manifestação acidental ou esporádica, mas sim fenômeno institucionalizado, decorrente da posição elevada que ocupam na estrutura da estratificação social. Nesse contexto, os mecanismos de controle social – polícia, justiça criminal, prisão etc – seriam garantias profundas e intensas de uma sociedade iníqua.

Ora, os estudos criminológicos tradicionais desenvolviam suas pesquisas a partir da definição de crime trazida pela legislação penal. Assim, crime era a conduta que a lei dizia ser criminosa. Estavam excluídos das fronteiras do estudo, portanto, comportamentos não definidos pela norma jurídica como sendo criminosos, por mais lesivos que tais atos fossem. Ficavam excluídas em tais estudos, desta maneira, condutas como a exploração do trabalho ou as diversas figuras caracterizadoras de abuso do poder econômico, a exemplo da fixação monopolista de preços. Deste modo, as hipóteses criminológicas eram desde o seu ponto de partida condicionadas pelas elites dominantes, responsáveis pela definição legal dos crimes. Desta forma, os mecanismos de controle social (policia, justiça criminal, sistema penitenciário etc) sempre desenvolviam suas funções trabalhando principalmente, ou quase exclusivamente, com os indivíduos pobres ou excluídos, que viviam marginalizados da vida social.

Uma ilustre Magistrada dos nossos dias definiu com nitidez essa circunstância: seria a “administração da pobreza”.

A proposta para o processo criminalizador (incriminação legal), a partir da visão crítica, objetiva reduzir as desigualdades de classe e socais. Esta visão faz repensar toda a política criminalizadora do Estado, que deve assumir uma criminalização e penalização da criminalidade das classes sociais dominantes: criminalidade econômica e política (abuso do poder), práticas anti-sociais na área de segurança do trabalho, da saúde pública, do meio ambiente, da economia popular, do patrimônio coletivo estatal e – não menos importante – contra o crime organizado”. (SHECAIRA, 2004, p. 358).

Na medida em que a lei penal expressa os interesses das elites dominantes, os comportamentos definidos como criminosos na maioria das vezes são condutas manifestadas pelos segmentos oprimidos e marginalizados da sociedade. Porém, ao mesmo tempo em que o Estado, através das suas instituições, legitima a opressão das elites dominantes, a conduta tida como criminosa apresenta-se como manifestação do desafio pessoal dos indivíduos excluídos contra esse poder organizado.

As desigualdades ocasionadas pelo conflito de interesses entre as várias camadas da sociedade levam o indivíduo excluído do sistema produtivo a aceitar correr os riscos derivados do comportamento criminoso, face à carência advinda das circunstâncias de miséria ou penúria material. O marginalizado apresenta então elevada tendência à prática de crimes, vez que é levado a tal situação em razão da necessidade de assegurar os recursos indispensáveis a sua própria sobrevivência.

O indivíduo tido como criminoso, entretanto, tem sua conduta constantemente utilizada para encobrir os verdadeiros problemas sociais - que não são imediatamente percebidos pela população em geral. As pessoas repudiam o criminoso comum, que é insultado e até agredido por quase todos, inclusive pelos oprimidos. Esse indivíduo transgressor atrai para si a revolta da população, cuja atenção é desviada dos problemas reais, que são aqueles advindos das desigualdades sociais.

O controle social adota a prisão como seu principal instrumento e traz a polícia como sua arma mais eficaz. Uma reflexão mais profunda revela que, na verdade, o objetivo encoberto dessas representações seria manifestar uma nem sempre velada intimidação contra os segmentos da população mantidos em dominação social. Como é do conhecimento de todos, a repressão policial sempre se mostrou mais eficiente quando voltada contra as parcelas subalternas da estratificação social.

Explica Juarez Cirino dos Santos:

O objetivo real mais geral do sistema de justiça criminal – além da aparência ideológica e da consciência honesta de seus agentes – é a moralização da classe trabalhadora, através da inculcação de uma “legalidade de base”: o aprendizado das regras da propriedade, a disciplina no trabalho produtivo, a estabilidade no emprego, na família etc”. (SANTOS, 2006, p. 84).

O sistema de controle social alega defender o “cidadão de bem” ao enfrentar os criminosos, o que legitimaria o uso da força pelas instituições estatais. “Será com rigor que o Estado enfrentará os marginais”, é o que as autoridades repetem quase sempre. Mas, na verdade, sua verdadeira missão será assegurar a disciplina dos trabalhadores inseridos no sistema produtivo. Com receio do desemprego e da marginalização, o operário acorda cedo e se dirige ao transporte coletivo que o levará até a fábrica onde trabalha. O medo da prisão garante o controle da força de trabalho, assegurando a continuidade da estrutura econômico-social imperante.

Assim, as instituições da sociedade funcionam como se realmente existissem indivíduos extraordinários, legitimados para cometer crimes, e outros tantos obrigados a viver na obediência, servindo apenas para a procriação. É com surpresa, portanto, que constatamos que a realidade parece acompanhar o extravagante pensamento do personagem Raskólnikov, protagonista do romance Crime e castigo, de Dostoiévski.

10. Conclusão

O presente estudo pretendeu ousar adentrar simultaneamente em dois universos misteriosos – o crime e a literatura. Com esta intenção, reuniu em um único texto estudos criminológicos e estudos literários.

Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa defendeu uma adesão radical a uma concepção interdisciplinar da compreensão da realidade, fugindo da tradicional divisão estanque entre os diversos “saberes”. Neste sentido, estudou-se o romance Crime e castigo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski, procurando extrair dessa experiência reflexões de natureza diversa daquelas normalmente consideradas como estritamente reservadas à literatura.

Inicialmente, tentou-se esboçar uma breve análise literária da referida obra. Depois, extrapolando intencionalmente os limites tradicionais dos estudos literários, buscou-se proceder a uma análise dos aspectos criminológicos levantados pelo tema.

Após tecer considerações sobre os vínculos supostamente existentes entre crime e eventuais patologias da personalidade individual, o estudo entendeu que a explicação sobre os motivos pelos quais se cometem crimes deveria ser buscada na própria ordem social. Assim, as dificuldades provocadas por uma estrutura econômica injusta produziriam problemas como o desemprego, a miséria e, por fim, produziriam também o crime.

O entendimento a que se chegou, portanto, foi no sentido de que as desigualdades sociais deveriam ser consideradas como determinantes essenciais do comportamento tido como criminoso. Desta maneira, buscou-se analisar como o comportamento criminoso se distribui entre as diversas camadas da estratificação social, examinando até que ponto as instituições da sociedade funcionariam como se realmente existissem indivíduos extraordinários legitimados para cometer crimes, enquanto outros tantos eram obrigados a viver na obediência às diversas normas de conduta.

Desta forma, este trabalho considera como alcançado o seu objetivo de demonstrar ser instrutiva e culturalmente enriquecedora a experiência de ler uma obra literária à luz dos ensinamentos das ciências criminais. Seguindo a lição de Alfredo Bosi (2003, p. 282), tratou-se aqui de tentar encontrar na história vivida a força da palavra, buscando, por outro lado, reconhecer no coração da obra o que não seria apenas literatura.

Notas

1 - NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. v.1.
2 - LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. 5. ed. São Paulo: UNESP, 2002.
3 - BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades - 34, 2003.
4 - SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.
5 - CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos: 1942-1978. Rio de Janeiro: UniverCidade – Topbooks, 1999. v. 1.
6 - CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959-1966.
7 - BACKTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
8 - MOISÉS, Massaud. A análise literária. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
9 - BEZERRA, Paulo. A perenidade de Dostoiévski. In: BERNARDINI, A. F. et al. Fiódor Dostoiévski: o profeta da literatura russa. São Paulo: Bregantini, 2006.
10 - DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. (Prestuplenie i nakazanie). Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: 34, 2005.
11 - MARANHÃO, Odon Ramos. Psicologia do crime. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
12 - ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três escolas penais: clássica, antropológica e crítica (estudo comparativo). 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977.
13 - SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
14 - DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1997.
15 - LYRA, Roberto; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Criminologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
16 - LIMA, Estácio de. O mundo estranho dos cangaceiros: ensaio bio-sociológico. Salvador: Itapoã, 1965.
17 - GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos – introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
18 - BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: ICC – Revan, 2002.
19 - SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 2. ed. Curitiba: ICPC – Lumen Juris, 2006.

(*Reno Viana é juiz de direito na Bahia)


Cabezas Cortadas, filme de Glauber Rocha, de 1970.


Estácio de Lima, O Mundo Estranho dos Cangaceiros, de 1965.