(Texto
postado na internet em 28 de setembro de 2011)
Esta
semana tive a honra de ser convidado para integrar um pequeno grupo
de intelectuais que acompanharão o compositor e pensador metafísico
Elomar
Figueira Mello
em
uma palestra no curso de matemática da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, aqui na cidade de Vitória da Conquista.
Nesta
oportunidade, o músico pretende demonstrar para os interessados que,
simplesmente, a
matemática não existe.
A
tarefa dos ditos intelectuais, pelo visto, será principalmente
assegurar a integridade física de Elomar, caso os matemáticos
resolvam abandonar o livre debate das ideias abstratas e partir para
a violência, em defesa da dignidade da área de conhecimento deles.
De
qualquer sorte, este convite para acompanhá-lo nesta empreitada é
uma honra muito grande. Sua figura é importantíssima para muita
gente, inclusive para mim. É enorme a influência que a sua obra
exerceu em nosso imaginário e, por extensão, em nossas vidas.
Para
mim, em particular, a aventura pelo universo elomariano começou em
1980, quando a canção dele O
peão na amarração
concorreu
na finalíssima do festival MPB
80 da
TV Globo. Foi nessa ocasião que tomei conhecimento de que aqui, no
sertão da Bahia, habitava este importante compositor.
Mas
a sua trajetória já era relativamente antiga e foi com certo
espanto que descobri o estranho estilo da sua música. Foi com
dificuldade que aprendi a gostar do LP Das
barrancas do Rio Gavião,
lançado em 1973 pela gravadora Philips, a mesma de quase todos os
grandes nomes da música popular brasileira de então. Na contracapa
do disco, impressionava o longo texto explicativo assinado pelo
consagrado poeta Vinicius de Morais. Uma das canções do LP,
inclusive, fez parte da trilha sonora da telenovela Gabriela,
adaptação do romance de Jorge Amado que fez muito sucesso na TV
Globo.
Eu
não conseguia entender, na época, as razões que levaram Elomar a
abandonar as gravadoras multinacionais e a lançar como produção
independente, em 1979, o álbum duplo Na
quadrada das águas perdidas.
Porém, surpreendentemente, esse disco dividiria o prêmio de melhor
daquele ano com o álbum Ópera
do malandro,
do célebre Chico Buarque. Em sua edição do dia 30 de janeiro de
1980, o Jornal do Brasil anuncia que “Elomar,
um príncipe da caatinga, tornou-se com dois discos o fenômeno
musical da década”.
Depois
disso, cada novo disco seu lançado trazia de imediato inúmeras
reportagens elogiosas nas principais publicações do país. Suas
apresentações recebiam o aplauso unânime de todos os jornais.
No
entanto, à medida que se aproximava a virada do século, Elomar ia
gradativamente se afastando da chamada MPB e cada vez mais se
aproximando da música erudita. Por fim, passou a se dedicar ao que
chamava de ópera do sertão, iniciando inclusive a construção
do Teatro Domus Operae, localizado na sua fazenda Casa dos
Carneiros.
Assim,
veloz, o tempo foi passando, os anos se transformando em décadas.
Em
2008, porém, ele surpreenderia novamente ao lançar o belo
Sertanílias,
inusitado romance
de cavalaria em
pleno terceiro milênio, com a promessa futura de pelo menos dois
novos volumes em continuação.
Ao
longo de todo esse período relatado, foi enorme a influência
exercida por Elomar em nossas vidas. Ilustra essa verdade os inúmeros
livros, as várias teses e as diversas pesquisas que se dedicaram a
analisar a sua obra e o alcance da sua presença.
A
meu ver, o seu perfil humano e a sua obra, ao negarem radicalmente a
cultura oficial vigente, antes de tudo evidenciam uma inequívoca
expressão de inconformidade. Trata-se de uma manifestação
no campo da arte e da estética daquilo que na sociedade foram o
fanatismo religioso e o cangaço. Esses fenômenos, juntamente com a
emigração forçada, formam um conjunto de atitudes desesperadas de
reação possível contra a opressão de uma paisagem natural e
humana de profunda hostilidade, como tem sido na História a
realidade do sertão nordestino.
É
como uma legítima expressão
de inconformidade,
por exemplo, que enxergo o singular livro Sertanílias,
lançado em 2008, e definido pelo autor com sendo um romance
de cavalaria.
Ao
ler este livro pela primeira vez, senti novamente o mesmo
estranhamento experimentado ao ouvir, há tantos anos, o disco Das
barrancas do Rio Gavião.
Era a surpresa de me deparar com algo diferente de tudo que já tinha
conhecido antes, algo completamente fora dos padrões vigentes. Em
uma segunda leitura atenta, entretanto, vi admirado se abrir o portal
mágico de acesso ao reino onde habitam os personagens elomarianos,
lá na região que ele denomina de Sertão
Profundo.
Lá na perigosa travessia da Vage
dos Trumento,
na altura do Laço
dos Môra,
no território da Quadrada
das Águas...
Elomar,
ao publicar Sertanílias,
repetia
trinta anos depois o gesto do conterrâneo Glauber Rocha. O famoso
cineasta baiano, já dono de uma das mais importantes obras autorais
do cinema mundial, resolve enveredar pelos domínios da literatura e
lança em 1978 o polêmico livro Riverão
Sussuarana.
Esses
livros são ambos romances de dificílima compreensão, caso o leitor
insista em ignorar as chaves que abrem as portas da interpretação
deles.
O
segredo, porém, é simples.
Os
dois livros são narrativas oníricas, e é assim que devem
ser lidos. O método de interpretação deve ser o mesmo empregado
para compreensão dos nossos sonhos e dos nossos pesadelos...
É
assim, através desse trabalho exegético, que descobrimos que a
literatura é também importante processo de conhecimento. Através
dela, enquanto expressão de determinado ambiente, podemos chegar a
uma interpretação da realidade, obtendo relevante forma de
conquista de elevada consciência humana e social.
Nesse
sentido, tentando interpretar os sonhos e os pesadelos traduzidos na
obra de Elomar, percebemos que ela é legítima expressão das
qualidades características das formações pastoris, existentes
espalhadas pelo mundo inteiro. Como artista dotado de profunda e
original criatividade, muito bom naquilo que faz, ele é dono de um
estilo único e inconfundível. Consegue, então, com seu talento
genial, converter seus fantasmas interiores em admiráveis e
prodigiosos mitos oníricos.
Expressão
resultante da formação pastoril do sertão nordestino, assim como
os equivalentes fenômenos sociais do fanatismo religioso, do cangaço
e da emigração, Sertanílias
e
seus mitos oníricos constituem também uma evidente manifestação
da inconformidade
sertaneja.
A
obra, dessa forma, é igualmente uma acentuada demonstração de
resistência.
A
insubmissão que resulta da resistência reforça a nossa
identidade cultural. Aprendemos que somos brasileiros do sertão.
Compreendemos que somos herdeiros de uma das mais antigas e belas
tradições do nosso país. O esforço para compreender essa herança
cultural legada pelos nossos antepassados muitas vezes exige estudo
profundo e grande erudição, fato que tem no próprio Elomar um
exemplo completo.
Por
outro lado, ao valorizarmos nossa identidade cultural, em um mundo
cada vez mais padronizado e uniforme, afirmamos assim a nossa
subjetividade. Essa atitude, por si só, constitui uma recusa à
massificação alienante e uma defesa cidadã do indivíduo enquanto
pessoa humana diferenciada. Trata-se, dessa forma, sem qualquer
dúvida, de um inequívoco ato libertário.
Essas
são algumas lições que trazemos do sonho literário para a
realidade da vida.
Mas
a busca é infinda, não termina nunca.
Por
tudo isso, fiquei profundamente envaidecido com a dedicatória que
tive a honra de receber do grande compositor.
“Para
o cavaleiro Reno, esta aparição, fantasmas de uma antiga quadra que
bondosos vêm nos visitar neste alfarrábio, pedaços perdidos de um
tempo estiolado...! Tão somente isto. Com o abraço fraterno,
Elomar. 2011, no minguante de setembro”.
Ao
receber o glorioso tratamento de “cavaleiro”, meu
sentimento foi o de ter alcançado uma carta patente de
sagração, um incontroverso título de cidadania do Sertão
Profundo. Sentindo-me verdadeiramente como um dos Doze Pares
da França, só me restava então ir ao campo da justa.
Deste
modo, cavaleiro Elomar, vamos ao combate. Aceito sua convocação
para a luta metafísica contra os infiéis matemáticos, aquela
legião de combatentes a serviço da tirania milenar de Euclides, da
antiga Alexandria.
Vamos
à peleja, ilustre paladino, lá “onde
os caminhos se dividiram e os sonhos alçaram voo”...
(*Reno
Viana é juiz de direito na Bahia)
Sertanílias, livro de 2008. |
Na Quadrada das Águas Perdidas, álbum de 1979. |
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