domingo, 9 de dezembro de 2018

O CAVALEIRO ELOMAR E A INEXISTENTE MATEMÁTICA

Reno Viana*

(Texto postado na internet em 28 de setembro de 2011)

Esta semana tive a honra de ser convidado para integrar um pequeno grupo de intelectuais que acompanharão o compositor e pensador metafísico Elomar Figueira Mello em uma palestra no curso de matemática da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, aqui na cidade de Vitória da Conquista.

Nesta oportunidade, o músico pretende demonstrar para os interessados que, simplesmente, a matemática não existe.

A tarefa dos ditos intelectuais, pelo visto, será principalmente assegurar a integridade física de Elomar, caso os matemáticos resolvam abandonar o livre debate das ideias abstratas e partir para a violência, em defesa da dignidade da área de conhecimento deles.

De qualquer sorte, este convite para acompanhá-lo nesta empreitada é uma honra muito grande. Sua figura é importantíssima para muita gente, inclusive para mim. É enorme a influência que a sua obra exerceu em nosso imaginário e, por extensão, em nossas vidas.

Para mim, em particular, a aventura pelo universo elomariano começou em 1980, quando a canção dele O peão na amarração concorreu na finalíssima do festival MPB 80 da TV Globo. Foi nessa ocasião que tomei conhecimento de que aqui, no sertão da Bahia, habitava este importante compositor.

Mas a sua trajetória já era relativamente antiga e foi com certo espanto que descobri o estranho estilo da sua música. Foi com dificuldade que aprendi a gostar do LP Das barrancas do Rio Gavião, lançado em 1973 pela gravadora Philips, a mesma de quase todos os grandes nomes da música popular brasileira de então. Na contracapa do disco, impressionava o longo texto explicativo assinado pelo consagrado poeta Vinicius de Morais. Uma das canções do LP, inclusive, fez parte da trilha sonora da telenovela Gabriela, adaptação do romance de Jorge Amado que fez muito sucesso na TV Globo.

Eu não conseguia entender, na época, as razões que levaram Elomar a abandonar as gravadoras multinacionais e a lançar como produção independente, em 1979, o álbum duplo Na quadrada das águas perdidas. Porém, surpreendentemente, esse disco dividiria o prêmio de melhor daquele ano com o álbum Ópera do malandro, do célebre Chico Buarque. Em sua edição do dia 30 de janeiro de 1980, o Jornal do Brasil anuncia que “Elomar, um príncipe da caatinga, tornou-se com dois discos o fenômeno musical da década”.

Depois disso, cada novo disco seu lançado trazia de imediato inúmeras reportagens elogiosas nas principais publicações do país. Suas apresentações recebiam o aplauso unânime de todos os jornais.

No entanto, à medida que se aproximava a virada do século, Elomar ia gradativamente se afastando da chamada MPB e cada vez mais se aproximando da música erudita. Por fim, passou a se dedicar ao que chamava de ópera do sertão, iniciando inclusive a construção do Teatro Domus Operae, localizado na sua fazenda Casa dos Carneiros.

Assim, veloz, o tempo foi passando, os anos se transformando em décadas.

Em 2008, porém, ele surpreenderia novamente ao lançar o belo Sertanílias, inusitado romance de cavalaria em pleno terceiro milênio, com a promessa futura de pelo menos dois novos volumes em continuação.

Ao longo de todo esse período relatado, foi enorme a influência exercida por Elomar em nossas vidas. Ilustra essa verdade os inúmeros livros, as várias teses e as diversas pesquisas que se dedicaram a analisar a sua obra e o alcance da sua presença.

A meu ver, o seu perfil humano e a sua obra, ao negarem radicalmente a cultura oficial vigente, antes de tudo evidenciam uma inequívoca expressão de inconformidade. Trata-se de uma manifestação no campo da arte e da estética daquilo que na sociedade foram o fanatismo religioso e o cangaço. Esses fenômenos, juntamente com a emigração forçada, formam um conjunto de atitudes desesperadas de reação possível contra a opressão de uma paisagem natural e humana de profunda hostilidade, como tem sido na História a realidade do sertão nordestino.

É como uma legítima expressão de inconformidade, por exemplo, que enxergo o singular livro Sertanílias, lançado em 2008, e definido pelo autor com sendo um romance de cavalaria.

Ao ler este livro pela primeira vez, senti novamente o mesmo estranhamento experimentado ao ouvir, há tantos anos, o disco Das barrancas do Rio Gavião. Era a surpresa de me deparar com algo diferente de tudo que já tinha conhecido antes, algo completamente fora dos padrões vigentes. Em uma segunda leitura atenta, entretanto, vi admirado se abrir o portal mágico de acesso ao reino onde habitam os personagens elomarianos, lá na região que ele denomina de Sertão Profundo. Lá na perigosa travessia da Vage dos Trumento, na altura do Laço dos Môra, no território da Quadrada das Águas...

Elomar, ao publicar Sertanílias, repetia trinta anos depois o gesto do conterrâneo Glauber Rocha. O famoso cineasta baiano, já dono de uma das mais importantes obras autorais do cinema mundial, resolve enveredar pelos domínios da literatura e lança em 1978 o polêmico livro Riverão Sussuarana. Esses livros são ambos romances de dificílima compreensão, caso o leitor insista em ignorar as chaves que abrem as portas da interpretação deles.

O segredo, porém, é simples.

Os dois livros são narrativas oníricas, e é assim que devem ser lidos. O método de interpretação deve ser o mesmo empregado para compreensão dos nossos sonhos e dos nossos pesadelos...

É assim, através desse trabalho exegético, que descobrimos que a literatura é também importante processo de conhecimento. Através dela, enquanto expressão de determinado ambiente, podemos chegar a uma interpretação da realidade, obtendo relevante forma de conquista de elevada consciência humana e social.

Nesse sentido, tentando interpretar os sonhos e os pesadelos traduzidos na obra de Elomar, percebemos que ela é legítima expressão das qualidades características das formações pastoris, existentes espalhadas pelo mundo inteiro. Como artista dotado de profunda e original criatividade, muito bom naquilo que faz, ele é dono de um estilo único e inconfundível. Consegue, então, com seu talento genial, converter seus fantasmas interiores em admiráveis e prodigiosos mitos oníricos.

Expressão resultante da formação pastoril do sertão nordestino, assim como os equivalentes fenômenos sociais do fanatismo religioso, do cangaço e da emigração, Sertanílias e seus mitos oníricos constituem também uma evidente manifestação da inconformidade sertaneja.

A obra, dessa forma, é igualmente uma acentuada demonstração de resistência.

A insubmissão que resulta da resistência reforça a nossa identidade cultural. Aprendemos que somos brasileiros do sertão. Compreendemos que somos herdeiros de uma das mais antigas e belas tradições do nosso país. O esforço para compreender essa herança cultural legada pelos nossos antepassados muitas vezes exige estudo profundo e grande erudição, fato que tem no próprio Elomar um exemplo completo.

Por outro lado, ao valorizarmos nossa identidade cultural, em um mundo cada vez mais padronizado e uniforme, afirmamos assim a nossa subjetividade. Essa atitude, por si só, constitui uma recusa à massificação alienante e uma defesa cidadã do indivíduo enquanto pessoa humana diferenciada. Trata-se, dessa forma, sem qualquer dúvida, de um inequívoco ato libertário.

Essas são algumas lições que trazemos do sonho literário para a realidade da vida.

Mas a busca é infinda, não termina nunca.

Por tudo isso, fiquei profundamente envaidecido com a dedicatória que tive a honra de receber do grande compositor.

Para o cavaleiro Reno, esta aparição, fantasmas de uma antiga quadra que bondosos vêm nos visitar neste alfarrábio, pedaços perdidos de um tempo estiolado...! Tão somente isto. Com o abraço fraterno, Elomar. 2011, no minguante de setembro”.

Ao receber o glorioso tratamento de “cavaleiro”, meu sentimento foi o de ter alcançado uma carta patente de sagração, um incontroverso título de cidadania do Sertão Profundo. Sentindo-me verdadeiramente como um dos Doze Pares da França, só me restava então ir ao campo da justa.

Deste modo, cavaleiro Elomar, vamos ao combate. Aceito sua convocação para a luta metafísica contra os infiéis matemáticos, aquela legião de combatentes a serviço da tirania milenar de Euclides, da antiga Alexandria.

Vamos à peleja, ilustre paladino, lá “onde os caminhos se dividiram e os sonhos alçaram voo”...

     (*Reno Viana é juiz de direito na Bahia)

Sertanílias, livro de 2008.

Na Quadrada das Águas Perdidas, álbum de 1979.


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